Desenvolvimento do psiquismo humano, segundo a Abordagem Sócio-Histórica: reflexões sobre enfrentamento da violência escolar

 

Fabrícia da Silva Machado [1]

https://orcid.org/0000-0003-1494-0936

 

 

 

Considerações iniciais

 

O estudo em tela parte da análise das obras de Rubinstein (1977), Leontiev (1978a) e Vásquez (2011), no intuito de discutir os fundamentos epistemológicos da Abordagem Sócio-Histórica. Nesse sentido, direcionamos desvelar as teses defendidas pelos autores, os princípios que norteiam os referidos estudos, as principais categorias, o processo de desenvolvimento da consciência e as contribuições da atividade consciente e orientada diante do enfrentamento da violência.

Primeiramente, discutiremos a obra denominada Princípios da Psicologia Geral, escrita por Rubinstein (1977), a qual realça que a atuação humana tem um caráter consciente e orientado para um fim, sendo originalmente determinada pelos impulsos.

No segundo momento, trataremos sobre a obra intitulada Desenvolvimento do Psiquismo, pertencente a Leontiev (1978b). Nesse estudo compreendemos que o psiquismo humano tem natureza sócio-histórica, ou seja, a consciência do homem se constitui em atividade e por meio das relações sociais. Além disso, são apresentadas as categorias atividade, necessidade, motivo, ações e operações que auxiliam entender o processo de desenvolvimento da consciência humana.

Vásquez (2011) na sua obra Filosofia da práxis apresenta uma filosofia que se fundamenta no método Materialismo Histórico-dialético, além de evidenciar os tipos de práxis e seu caráter de totalidade.

Tendo como preocupação os estudos em pauta, situamos o referido artigo da seguinte maneira. Na primeira seção, discorremos sobre o papel da atuação, segundo Rubinstein (1977) para o desenvolvimento da consciência, seguindo como referência o jogo, o trabalho e o estudo. Na segunda seção, trataremos sobre as contribuições de Leontiev (1978a) para compreender o desenvolvimento da consciência humana e o papel das categorias esplanadas em seu estudo. Na terceira seção, discutiremos sobre o conceito de práxis como processo criador e revolucionário. Na quarta, iremos trazer as contribuições da atividade consciente e orientada diante do enfrentamento da violência. E, por último, levantaremos as considerações finais.

Na seção seguinte, iremos focalizar o papel da atuação humana no desenvolvimento da atividade, segundo Rubinstein (1977).

 

O papel da atuação humana no desenvolvimento da atividade

 

Os estudos de Rubinstein (1977, p.11) no remetem compreender a sua tese de que “o homem não é apenas um ser passivo, contemplativo, mas um ser ativo”. Deste modo, devemos estudá-lo, levando em consideração a sua prática, isto é, explicá-lo no seu processo de desenvolvimento, de movimento e de transformação.

Para Rubinstein (1977), atuação é um componente da atividade que tem caráter consciente e orientado para um fim. A formação e o desenvolvimento da atuação têm uma base social, assim como, consciência humana. Por sua vez, “o trabalho surge da relação entre a finalidade e as condições de sua realização, é o mesmo que determina a sua estrutura psicológica” (Rubinstein,1977, p.25). Deste modo, o objeto orientado para um fim e as condições existentes são aspectos essenciais para acontecer a atuação.

Nesse contexto, a ação acontece devido ao impulso que se converte para o homem em motivação da atuação. Assim, “em toda atuação humana se estabelece necessariamente uma determinada relação entre o socialmente importante e o importante para o homem pessoalmente” (Rubinstein,1977, p.27). O objeto da ação humana com fins possíveis é determinado pelas relações sociais estabelecidas.

Rubinstein (1977) explica sua tese, partindo de três processos dialéticos que o homem realiza durante o seu processo de desenvolvimento sócio- histórico, são eles: o jogo, o estudo e o trabalho. O jogo é o primeiro processo realizado pelo homem durante a infância, sendo considerado “uma actividade racional, quer dizer, um conjunto de atos racionais, que estão vinculados pela unidade da motivação” (Rubinstein,1977, p. 109). O estudo é posterior ao jogo e antecede o trabalho, tendo como finalidade principal a preparação consciente para a atividade do trabalho. O trabalho, assim como as outras formas de atividade, tem um caráter social, além de transformar o meio social e o homem sócio-histórico.

Para o autor supracitado, o jogo, o estudo e o trabalho são considerados atividades, quando essas “têm caráter consciente e orientados para o fim, onde nela e por meio dela, o ser humano realiza os seus objetivos, objetiviza os seus projetos e ideias dentro da realidade que modificam” (Rubinstein,1977, p.13). No entanto, se o jogo, o estudo e o trabalho realizados pelo o homem não tiverem uma finalidade construída no seu processo sócio-histórico, isso acarretará na produção de uma prática social alienada e não emancipada, isto é, não produzirá um sentido que se aproxime da significação de jogo, estudo e trabalho construída socialmente ao longo dos anos.

Então, para Rubinstein (1977), a atuação humana é determinada pelo conteúdo social. Além disso, é de fundamental importância compreender o nível de consciência do homem, ou seja, se o homem sócio-histórico reconhece a existência desta relação e aprecia. O conflito trazido pelos sentidos e pelos significados externalizados desvela as contradições que impulsionam a repensar as ideologias presentes no discurso, fazendo-o rever seus objetivos e motivos que determinam suas ações, a fim de torná-las mais expandidas e dialógicas.

Na próxima seção, discutiremos sobre o desenvolvimento da consciência e da atividade, segundo Leontiev.

 

O desenvolvimento da consciência e da atividade, segundo Leontiev

 

Com base na Abordagem Sócio-Histórica, o homem se constitui no trabalho e nas relações sociais, uma vez que, ao manter relações recíprocas com o meio social, transforma o meio social e igualmente transforma a si mesmo. Nessa perspectiva, realçamos a tese de Leontiev (1978b), ao afirmar que o psiquismo humano tem natureza sócio-histórica.

Segundo o princípio norteador dos estudos de Leontiev (1978b, p.102 ), “o homem é um ser em processo de construção de si mesmo na relação dialética com sua realidade social, histórica e cultural”. Então, a consciência é socialmente construída e reconstruída ao longo dos anos (Leontiev, 1978a), cabendo à  atividade impulsionar o desenvolvimento do psiquismo humano.

Marx e Engels (2001, p.534 ), ao relatarem que “a vida social é essencialmente prática”, nos conduzem a entender que o processo de desenvolvimento do ser humano é dialeticamente prático, pois é na prática e/ou no trabalho, que o homem começa a usar a linguagem, os instrumentos e mantém relações interpessoais.

Para os animais, o uso dos instrumentos não tem caráter coletivo, não determina as relações de comunicação entre os envolvidos na realização do trabalho e tampouco faz parte de um processo social, pois o objeto de atividade dos animais é movido por motivos biológicos ou instintivos, o que, ao final de sua atividade laboral, não gera outras necessidades e não aperfeiçoa os instrumentos.

O homem realiza seu trabalho, tendo como base o processo social, apoiado na coletividade e com uso da linguagem. Assim, o homem realiza seu trabalho para atender a uma necessidade produzida no decorrer do seu processo sócio-histórico, no qual gerará motivos que o impulsionem a planejar ações e a executar operações direcionadas para uma finalidade. O homem, como sujeito sócio-histórico, aperfeiçoa os instrumentos e gera outras necessidades no decorrer de seu desenvolvimento, isso porque as condições sociais de existência dele são desenvolvidas por transformações quantitativas e qualitativas.

Daí a relevância da linguagem no processo de desenvolvimento da consciência humana, pois “a consciência só pode existir nas condições da existência da linguagem, que aparece ao mesmo tempo que ela no processo de trabalho” (Leontiev, 1978b, p. 94).

Vigostki (2001) relata que a linguagem é instrumento psicológico mediador, já que promove a interação entre os seres humanos e possibilita o desenvolvimento do pensamento e da ação. Portanto, a linguagem é de suma importância para o processo de desenvolvimento dos sujeitos sócio-históricos, uma vez que exerce uma função social e comunicativa, bem como uma função organizadora e planejadora do pensamento e da ação.

Sendo assim, o homem tem acesso ao mundo objetal, mediado pela atividade e pela linguagem. Tal processo é iniciado na apropriação da palavra através do que é posto, consequentemente, o homem apropria-se das significações produzidas no decorrer do processo sócio-histórico e atribui-lhes os sentidos pessoais.

Tendo como base o mundo objetal, o homem vai desvelando o conteúdo sensível, ou seja, as sensações, as impressões emocionais, as imagens de percepção, a memória, as representações de sua realidade entre outros... O conteúdo sensível dá “cor e vida" à consciência, sendo considerado a base e as condições da consciência, embora não exprima em si toda sua especificidade.

Leontiev (1978b, p. 94) afirma que a significação social “é aquilo que num objeto ou fenômeno se descobre objetivamente num sistema de ligações, de interações e de relações objetivas”. Assim, a significação social é apropriada pelo homem, a partir da realidade e das relações sociais mantidas por ele. Nesse processo dialético, a significação é generalizada e fixada na linguagem e, com base nessa significação, o homem produz o seu sentido pessoal.

O sentido pessoal é “antes de mais nada uma relação que se cria na vida, na atividade do sujeito” (Leontiev, 1978b, p. 97). A produção dos sentidos pessoais está intimamente relacionada com o motivo que impulsiona a atividade humana, levando em consideração as significações sociais produzidas socialmente e as vivências do homem. Assim, o sentido pessoal é produzido pela relação objetiva entre o motivo (aquilo que incita o homem a agir) e objetivo (a direção de sua ação/resultado imediato), ou seja, “dito de outro modo, para encontrar o sentido pessoal devemos descobrir o motivo que lhe corresponde” (Leontiev, 1978b, p.97).

Portanto, a totalidade desses processos (conteúdo sensível, significação social e sentido pessoal) constitui a matéria subjetiva da consciência, que, por sua vez, é a natureza da relação entre as significações sociais e o sentido que definirá a natureza da consciência. A consciência elaborada no decorrer do processo sócio-histórico poderá atingir um nível alienado ou emancipado, dependendo das condições sociais e da linguagem estabelecida.

Quando o homem se afasta das significações sociais, isto é, quanto mais os sentidos pessoais se afastam da significação social, mais alienada é a consciência, consequentemente a prática social produzida é cristalizada e antidialógica.

Já, para desenvolver uma consciência emancipada, o homem tem que orientar sua atividade para uma finalidade movida por uma necessidade produzida no decorrer do seu processo sócio-histórico (Afanássiev, 1968), na qual gerará motivos que o incitam a agir e focalizar o objetivo dessa atividade. Para operacionalizar a atividade orientada para um fim, terá que elaborar ações e executar operações. Cada ação pode ser realizada por diversas operações. A ação é um processo condicionado a um objetivo consciente. A operação é o modo de fazer a ação.

A consciência pode ser expressa por meio de ideias, teorias, costumes, tradições entre outros, os quais são apropriados pelo homem mediados pela linguagem a partir do mundo objetal, consequentemente são compartilhadas as significações sociais e atribuídos os sentidos pessoais no decorrer do processo sócio-histórico.

Na seção seguinte, abordaremos a práxis, segundo os estudos de Vásquez (2011).

 

Desenvolvimento da práxis no processo de desenvolvimento sócio histórico

 

Vásquez (2011, p.267), em seus estudos sobre a filosofia da práxis, afirma em sua tese que “a práxis é ação do homem sobre a matéria e criação – através dela – de uma nova realidade”, isto é, uma práxis que privilegia a unidade teoria e prática de forma criadora e revolucionária a fim de transformar a realidade.

O objeto da atividade prática é a natureza, a sociedade e os homens sociais. Então, para se atingir a práxis, é necessário que o fim da atividade seja direcionado para uma transformação real e social no intuito de satisfazer as necessidades humanas.

Tendo como base a realidade do sujeito sócio-histórico, Vásquez (2011, p. 221) indica que “toda práxis é atividade, mas nem toda atividade é práxis”. Nem toda atividade orientada para um fim atinge a práxis, mas, ao atingir a práxis, revela-se uma atividade consciente e orientada que determina a transformação do real.

Para Vásquez (2011, p. 221), a atividade é “um ato ou conjunto de atos em virtude dos quais um sujeito ativo (agente) modifica uma matéria-prima dada”. Ele ressalta o caráter de generalidade, ao significar a atividade, uma vez que não especifica o tipo de agente (físico, biológico ou humano), a natureza da matéria-prima sobre a qual atua (corpo físico, ser vivo, vivência psíquica entre outros) e o tipo de ato (físico, psíquico, social) que orientam a transformação da realidade. Daí a significância do  produto da atividade que se apresenta em diversos níveis, por exemplo, um novo sistema social, um instrumento aperfeiçoado, uma obra artística entre outros (Vásquez, 2011).

Portanto, a atividade para Vásquez (2011, p.221) tem sinônimo de ação e/ou ato que transforma uma matéria exterior ou imanente ao agente. Por sua vez, a atividade opõe-se à passividade e privilegia a efetividade. O homem, nutrido pela passividade, desenvolve uma consciência comum que o orienta agir para atender às necessidades práticas imediatas. Ao invés disso, o homem nutrido pela efetividade produz uma atividade que se transforma em práxis, isto é, desenvolve um nível de consciência crítico que o impulsiona a transformar a realidade de forma criadora e revolucionária.

Marx e Engels (2001), alertam, em suma, que a relação entre teoria e práxis é fundamentalmente teórica e prática. É prática, a partir do momento que existe uma teoria que fundamenta sua ação, isto é, quando desvelamos por meio dos discursos a teoria que orienta o agir. É teórica, na medida em que tem caráter consciente e orientado para um fim.

Vásquez (2011, p. 222) esclarece que a atividade não é produzida passivamente, mas no pleno exercício da prática social. Então, quando tratamos sobre “a atividade propriamente humana verificamos que os atos dirigidos a um objeto para transformá-lo se iniciam como um resultado ideal ou fim, e terminam com o resultado ou produto efetivo, real”, isto é, “a determinação não vem do passado, mas sim, do futuro”.

O resultado da atividade é planejado duas vezes e em momentos distintos. Primeiramente a consciência elabora o resultado ideal, isto é, o resultado é predefinido, mediante as motivações impulsionadas pelas necessidades produzidas sócio-historicamente. No entanto, no decorrer do processo de desenvolvimento da atividade. poderão ocorrer mudanças nas motivações e nas condições existentes que desencadearão num resultado real. O resultado real é o produto da atividade consciente e orientada para um fim, sendo, que, muitas vezes, esse resultado é diferente do resultado ideal predefinido pela consciência humana.

Vásquez (2011, p.223) relata que a “inadequação entre intenção e resultado evidencia-se tanto na atividade dos indivíduos como na propriamente social”. A atividade propriamente humana e social é orientada, conforme os fins predefinidos pela consciência. Entretanto, devido às mudanças dos motivos, das necessidades e das condições de realização da atividade, o fim predefinido é transformado no resultado real. É no resultado real que observamos se atividade orientada e consciente atingiu a práxis criadora e revolucionária, isto é, se houve uma transformação do real de forma criativamente qualitativa.

Para determinarmos que tipo de práxis foi produzida, levamos em consideração o grau de penetração da consciência produzida pela homem sócio-histórico e o grau de criação ou humanização da matéria transformada, evidenciado no resultado da atividade prática. Com base nos dois critérios niveladores, duas vertentes se inter-relacionam. A primeira é composta pela práxis criadora e pela reiterativa ou imitativa. A segunda é a práxis reflexiva e a espontânea.

A práxis criadora é determinante para o processo de desenvolvimento da atividade humana. O homem tem sua atividade prática fundamentalmente criadora, mas, para criar algo novo, tem que ser movido por novas necessidades produzidas no processo sócio-histórico, caso contrário estabelece a repetição para atender às necessidades existentes das relações sociais.

A atividade prática criadora requer a unidade indissolúvel entre o objetivo e o subjetivo. Primeiramente, o resultado da atividade é predefinido pela consciência, mas é estruturada e executada, levando em consideração a imprevisibilidade do processo, isto é, as mudanças das condições existentes e do aparecimento de novas necessidades, consequentemente, o resultado final e /ou real forma uma unidade imprevisível e irrepetível.

Já na práxis reiterativa ou imitativa, não levamos em conta a unidade entre o objetivo e o subjetivo, pois, no processo de produção da atividade, o resultado pré-idealizado pela consciência é condizente com o resultado real. Desta forma, o resultado real da atividade provém da previsibilidade do processo que ocasiona na repetição do processo prático, tendo em vista a primazia do resultado ideal, elaborado pela consciência em relação às condições e às necessidades surgidas no processo sócio-histórico.

O autor esclarece que, para qualificar a práxis de espontânea ou reflexiva, temos que levar em consideração o grau de consciência que se tem da atividade prática no processo de desenvolvimento. Na práxis reflexiva, há uma elevada consciência da práxis. Enquanto, na práxis espontânea, há uma baixa ou ínfima consciência dela.

As relações entre a práxis reflexiva e a práxis espontânea não estabelecem um modo absoluto, pois nem sempre se apresentam no mesmo plano (Vásquez, 2011). Desta forma, a eliminação da práxis espontânea no processo prático acarretará na produção de uma práxis repetitiva e mecânica, isto é, a elevação do espontâneo na práxis à qualidade de absoluto não direciona a produção de uma práxis verdadeiramente criadora.

Por sua vez, “toda práxis pressupõe uma relação entre o espontâneo e o reflexivo” (Vásquez, 2011, p.309). A práxis criadora se dá fundamentalmente no nível da práxis reflexiva.

Os diferentes níveis não excluem os vínculos mútuos entre as práxis existentes. Por sua vez, esses vínculos não são imutáveis, isto é, são produzidos no contexto de uma práxis total determinada pelas relações sociais estabelecidas e pelas condições existentes de realização.

Vásquez (2011, p. 266) alerta que “o espontâneo não está isento de elementos da criação, e o reflexivo pode estar a serviço de uma práxis reiterativa”. Portanto, a atividade humana produz uma práxis total, isto é, promove um processo dialético de continuidade, tendo em vista que, ao incorporar o novo ao velho, mantém o que há de positivo da práxis anterior produzida pelas relações sociais, caracterizando o desenvolvimento espiral e não linear da atividade humana.

Na próxima seção, trataremos das contribuições da atividade consciente e orientada diante do enfrentamento da violência.

 

Contribuições da atividade diante do enfrentamento à violência no contexto escolar

 

A violência vem causando um impacto expressivo na sociedade e no âmbito escolar, conforme é visualizado na mídia televisiva, nos jornais escritos, na internet e, principalmente, no meio acadêmico e nos discursos dos professores, alunos, gestores, funcionários de escolas e os pais de alunos, conforme demonstram estudos como os de Abramovay e Rua (2002), Charlot (2002), Guimarães (1996), entre outros.

No âmbito escolar, encontramos nos discursos dos professores insatisfações em lidar com situações de violência, tais como: briga entre alunos, briga entre aluno e professor, briga entre aluno e funcionário, briga entre professor e pais de aluno, xingamentos, ameaças entre outras manifestações que desestabilizam o desenvolvimento da prática docente e também o desempenho do aluno.

Desse modo, os professores, muitas vezes, sentem-se limitados e até impotentes em lidar com a problemática da violência, afirmando que, durante a formação inicial, não foram instigados a fazer reflexão crítica que relacionasse teoria e prática e compreendessem que esses processos são indissociáveis, e que, embora formem uma unidade, têm identidade própria.

No desenvolvimento de práticas de enfrentamento à violência no âmbito escolar, os professores, na maioria das vezes, fazem uso de práticas moldadas na repetição de ações realizadas por seus professores ou em experiências vivenciadas no decorrer de sua trajetória escolar ou pessoal. Nesse caso, a referida prática apresenta contradições advindas da fragilidade na realização de diagnósticos precisos da realidade e da falta de contextualização histórica da problemática vivida da violência, conforme evidenciam Guimarães (1988), Abramovay e Rua (2002), Charlot (2002), entre outros.

As situações de contradição expostas não encontram respaldo nos processos de formação contínua vivenciados pelos professores, pois, nesses processos, prevalece a ausência de temáticas que os auxiliem a enfrentará violência no contexto escolar. Os cursos de formação contínua limitam-se a trabalhar aspectos conteudistas relacionados à problemática da violência, não contribuindo, dessa forma, para que esses profissionais sejam formados para lidar com essa realidade, uma vez que são deixadas de lado estratégias de enfrentamento da violência no contexto escolar, conforme afirmam estudiosos como Abramovay e Rua (2002), Milani (2003), entre outros.

Muitas vezes o professor não desenvolve uma atividade orientada e consciente para se defrontar com a violência em contexto escolar. Ele produz significações que são cristalizadas no decorrer do processo sócio-histórico, as quais representam valores, ideias e teorias que orientam seu agir adiante da problemática da violência.

O professor, para desenvolver uma atividade orientada e consciente para enfrentar a violência, precisa primeiramente ser movido pelas necessidades produzidas sócio-historicamente. Desta forma, o professor tem que estar consciente do motivo que orienta a sua ação de enfrentar a violência e, consequentemente, saber se o objetivo que pretende alcançar se aproxima da significação social mais desenvolvida para tal.

Partindo da materialidade do contexto apresentado, fizemos vários questionamentos, tais como: quais os motivos que orientam a ação do professor adiante da violência em contexto escolar? Quais as significações produzidas pelos professores adiante da violência em contexto escolar?

Leontiev (1978a) esclarece que o sentido pessoal e o motivo têm uma relação de intimidade, uma vez que, para desvelar o sentido pessoal, temos que saber primeiramente o motivo e o objetivo que orientam o agir adiante da problemática da violência.

Para o autor supracitado, há dois tipos de motivos, são eles: os motivos apenas compreensíveis e os motivos realmente eficazes. Os motivos compreensíveis são externos à atividade, isto é, se afastam da significação social produzida. Os motivos realmente eficazes se aproximam da significação social mais desenvolvida para enfrentar a violência no contexto escolar.

Leontiev (1988) ressalta o papel do professor e da escola no processo de transformação dos motivos, bem como, os motivos que orientam o professor a agir perante o enfrentamento da violência em contexto escolar. Nessa ótica, apontamos que os contextos colaborativos propiciam o diálogo crítico, instigando o professor a externalizar seus motivos, suas teorias, seus valores e suas ideias, para daí gerar conflitos e trazer à tona as contradições.

Para que isso aconteça nos contextos colaborativos, é necessário fazermos alguns questionamentos, tais como: que aluno eu formo, quando estou enfrentamento à violência em contexto escolar? Que tipo de prática produzo, quando estou enfrentando a violência? Como posso fazer diferente?

As contradições trazidas nos discursos dos professores promovem o repensar dos motivos, das teorias, dos valores e das ideias que fundamentam seu agir adiante da problemática da violência. Se o professor atingir um nível de consciência mais desenvolvido, mudará os motivos compreensíveis para os motivos realmente eficazes a fim de confrontar a violência em âmbito escolar.

Daí a relevância da prática da cultura de paz como a mais desenvolvida para vencer a violência escolar. Os sentidos pessoais produzidos pelos professores, que têm como referência a mencionada significação, trazem à tona valores como justiça, diversidade, respeito e solidariedade, por parte de indivíduos, grupos, instituições e governos. Em sendo assim, é possível enfrentar as questões relacionadas à violência escolar promovendo transformações tanto nos níveis macro (estrutura sociais, econômicas, políticas e jurídicas) quanto nos níveis micro (valores pessoais, atitudes e estilos de vida, relações interpessoais), porque esses níveis não são excludentes e, sim, complementares (Milani, 2003, p. 38). Como bem aponta  Milani (2003, p. 39), são estratégias possíveis para enfrentar processos violentos:

 

[...] uma relação educador-educando fundamentada no afeto, respeito e diálogo; um ensino que incorpore a dimensão dos valores éticos e humanos; processos decisórios democráticos com a efetiva participação dos alunos e de seus pais nos destinos da comunidade; implementação de programas; aproveitamento das oportunidades educativas para o aprendizado do respeito às diferenças e resolução pacífica de conflitos; abandono do modelo vigente de competição e individualismo por outro, fundamentado na cooperação e trabalho conjunto, etc.

 

A significação da prática da cultura de paz requer um diálogo crítico e problematizador, conforme propõe Freire (1987), a fim de favorecer a incorporação de valores éticos e humanos e de, principalmente, promover a participação da comunidade escolar para superar essa realidade em âmbito escolar.

Então, o professor, ao produzir uma atividade consciente e orientada por motivos e objetivos centrados na significação da prática da cultura de paz, atingirá uma práxis criadora e revolucionária, isto é, transformará os contextos acometidos pela problemática da violência.

Na próxima seção, traremos as considerações finais produzidas neste artigo.

 

Considerações finais

 

As discussões organizadas neste artigo apresentaram as categorias (atuação, atividade e práxis), o desenvolvimento da consciência e da atividade no processo sócio-histórico e as contribuições da atividade consciente e orientada no enfrentamento da violência em contexto escolar.

A atividade é um processo dialético orientado e consciente para um fim mediado pelas relações sociais e pela linguagem. O processo de desenvolvimento da atividade é impulsionado pelas necessidades sócio-históricas e pelos motivos produzidos ao longo dos anos. O motivo da atividade direciona o homem a realizar sua ação em diferentes operações.

Assim, para desvelarmos o sentido pessoal que orienta o professor a agir para enfrentar a violência em contexto escolar, cabe conhecer o motivo que impulsiona o seu agir. Então, para mudarmos os motivos compreensíveis para motivos realmente eficazes, é preciso promover processos colaborativos e reflexivos que instiguem o professor a repensar suas teorias, suas práticas, valores e ideias, a fim de atingir um nível de consciência mais desenvolvido para daí expandir as práticas de enfrentamento à violência.

Portanto há de haver uma atividade consciente e orientada por motivos e objetivos centrados na significação da prática da cultura de paz, a fim de atingir uma práxis criadora e revolucionária, isto é, uma práxis que transforme os contextos acometidos pela violência escolar.

 

Referências

 

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VIGOTSKI, L.S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

 

 

Submissão: 29.03.2024.

Aprovação: 27.03.2025.



[1]Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão, Caxias: fabricia.machado@ifma.edu.br.