Panorama do Ensino Superior no Brasil: colônia e império[1]
André Wagner Rodrigues de Sousa[2]
https://orcid.org/0009-0002-4344-2573
Luciana Cristina Salvatti Coutinho[3]
https://orcid.org/0000-0002-8682-0952
Resumo
O trabalho trata da reconstituição panorâmica do desenvolvimento do Ensino Superior no Brasil em suas fases colonial e monárquica. Por meio da revisão bibliográfica e da análise documental em uma perspectiva qualitativa, fundamentada pelos pressupostos teóricos do materialismo histórico-dialético, objetivou-se interpretar o movimento de construção das políticas de Ensino Superior no Brasil em suas relações com o universo lusitano e após a emancipação política. Nas considerações finais, defende-se que os cursos de Ensino Superior historicamente serviram aos projetos hegemônicos das classes dirigentes, sobretudo pela formação dos novos quadros da burocracia do poder instituído, embora nos diferentes períodos em análise sempre tenham guardado o potencial para sua crítica e superação.
Palavras-chave: Ensino Superior. História do Brasil. Política educacional.
Overview of Undergraduate Education in Brazil: colony and empire
Abstract
The work deals with the panoramic reconstruction of the development of undergraduate courses in Brazil in its colonial and monarchical phases. Through bibliographical review and documentary analysis in a qualitative perspective, based on the theoretical assumptions of historical-dialectic materialism, the objective was to interpret the movement towards the construction of undergraduate courses policies in Brazil in its relations with the Lusitanian universe and after emancipation policy. In the final considerations, it is argued that undergraduate courses have historically served the hegemonic projects of the ruling classes, especially through the formation of new cadres of the bureaucracy of the established power, although in the different periods under analysis they have always retained the potential for criticism and overcoming.
Keywords: Undergraduate education. History of Brazil. Educational policy.
Introdução
No decorrer da prática investigativa em uma pesquisa acadêmica, em um momento anterior e preparatório à exposição dos resultados obtidos, é pertinente que se opere um processo gradual de organização das múltiplas análises realizadas, de sistematização do conhecimento construído em um modelo interpretativo coerente que balizará a tese a ser defendida. E para organização interna desse modelo abstrato – concreto pensado, reflexo da realidade concreta –, no qual se situa o objeto da análise, não raro se torna necessário desenvolver, na fase de investigação da pesquisa, estudos e análises que ao fim do processo não se farão notar de forma evidente na fase posterior de exposição dos seus resultados.
A constatação desse fenômeno se fez presente no âmbito da pesquisa científica em curso, na qual se objetiva desvelar as relações entre a institucionalização da educação escolar e a formação do Estado-Nação brasileiro no decurso do século XIX; e os sentidos e significados que as políticas educacionais assumiram no período, como possíveis depositárias de projetos societários e cimento ideológico (Gramsci, 1999) constitutivo dos discursos hegemônicos para a conformação do novo pacto social representado pelo advento do Estado independente. Para relacionar adequadamente o papel do Ensino Superior à nova ordem instituída, faz-se necessário – ao longo das investigações dessa empreitada ainda em desenvolvimento –, entre outras ações, compreender a trajetória de desenvolvimento do Ensino Superior no Brasil desde a época colonial, passando pelo período de emancipação política e adentrando o período monárquico.
Decorrente dessa pesquisa, este trabalho pretende apresentar o movimento de constituição das políticas educacionais para os cursos de Ensino Superior no Brasil durante o período colonial e como Estado-Nação independente, na época do regime monárquico, entre os anos de 1822 e 1889, evidenciando suas formas de organização e funcionamento.
Embasado pelos pressupostos teórico-metodológicos do materialismo histórico-dialético como paradigma epistemológico, por meio da pesquisa bibliográfica e documental, em uma abordagem qualitativa, o texto tem como finalidade delinear em suas linhas gerais as principais medidas desenvolvidas nos territórios da América portuguesa por sua metrópole europeia durante a fase colonial; e, após a ruptura política de 1822, os atos do Estado imperial para a construção e o desenvolvimento institucional da educação superior nacional no jovem país ao longo do século XIX, em uma perspectiva histórica. Com isso, espera-se que a análise do processo de constituição das políticas de Ensino Superior no território nacional possa oferecer subsídios para a compreensão do fenômeno em uma perspectiva de longa duração e auxiliar novos estudos sobre esse nível de ensino nos períodos históricos aqui citados e na contemporaneidade.
A orientação teórico-metodológica assumida no trabalho, seguindo a perspectiva da filosofia da práxis atualizada por Gramsci (1999), converge com as reflexões desenvolvidas por Cury (1986) em seu estudo para o desenvolvimento de uma teoria crítica da educação no Brasil. Assim, no decorrer do trabalho as relações entre o fenômeno educativo e a sociedade são concebidas de forma dialética e inserida em uma totalidade, como síntese de múltiplas determinações. Como expectativas de explicação da realidade histórica investigada, categorias como mediação, hegemonia, reprodução e contradição – além da dialética e da totalidade – foram mobilizadas para uma análise crítica do processo histórico de desenvolvimento das políticas de Ensino Superior no Brasil em suas fases colonial e monárquica[4].
Após exame dessa trajetória, nas considerações finais defende-se que a constituição dos cursos de nível superior no Brasil tinha o objetivo, entre outras finalidades, de atender à necessidade de formação de uma classe intelectual capaz de elaborar e reproduzir – sob os fundamentos da racionalidade e da ciência moderna – os discursos hegemônicos das camadas sociais dominantes à frente do Estado imperial. A intenção era legitimar o ordenamento social e político do período, possibilitar seu ingresso na modernidade representada pelo modelo de civilização europeia e favorecer o desenvolvimento econômico sem os riscos de uma revolução social. Assim como os sistemas nacionais de ensino dos centros do capitalismo industrial foram fundamentais para o estabelecimento do ideário liberal no mundo ocidental no decorrer do século XIX, as políticas educacionais implementadas durante o regime monárquico também contribuíram de forma determinante para a consolidação do projeto de nação encabeçado pelas classes sociais influentes no Império do Brasil. Tal fenômeno ocorre porque, como observa Gramsci (1999, p. 399), “toda relação de ‘hegemonia’ é necessariamente uma relação pedagógica, que se verifica não apenas no interior de uma nação, entre as diversas forças que a compõem, mas em todo o campo internacional e mundial, entre conjuntos de civilizações nacionais e continentais”.
O legado educacional da época colonial
Apesar de ambos os processos de colonização se destinarem à exploração dos recursos naturais de forma a garantir a máxima acumulação de capital em suas respectivas metrópoles – demandando a organização das atividades econômicas em torno da produção de matérias-primas nos grandes latifúndios por meio da utilização da mão de obra cativa, características basilares das colônias de exploração (Prado Júnior, 1993)[5] –, os territórios americanos dominados pelos reinos da Espanha e de Portugal como desdobramento das grandes navegações na Era Moderna apresentavam características próprias que as distinguiam.
A América hispânica era administrada pelos vice-reinos da Nova Espanha, Nova Granada, Peru e Rio da Prata – além de algumas capitanias-gerais –, o que possibilitou aos colonos incorporarem, ao menos no campo simbólico, o sentimento de integração ao conjunto imperial espanhol, ainda que com as clássicas distinções entre chapetones e criollos. Na América lusitana, por outro lado, a aplicação tardia desse modelo de vice-reinado, com a nomeação dos governadores-gerais como vice-reis a partir do século XVIII, não chegou a suplantar efetivamente a forma da administração anterior, estabelecida pelas capitanias hereditárias e gerais, impactando a formação das identidades coletivas nos territórios que posteriormente formariam o Brasil (Jancsó; Pimenta, 2000)[6].
Desse modo, pode-se aventar a hipótese de que, não obstante tivessem o mesmo objetivo exploratório, ao passo que a administração espanhola se empenhou no projeto de recriar à sua imagem as sociedades coloniais ultramarinas – intenção expressa inclusive nos nomes dos vice-reinos, como Nova Espanha ou Nova Granada –, tal aspecto do projeto colonial não teria se verificado da mesma maneira nas medidas administrativas do seu vizinho ibérico, que sempre frisou o lugar de sujeição dos territórios lusitanos na América em relação ao seu centro administrador, em Lisboa.
Essa diferença de mentalidade possivelmente figura entre as razões que explicam a implementação de universidades na América espanhola desde meados do século XVI e sua completa ausência na América portuguesa durante o período colonial. À época da emancipação política do Brasil havia, nos territórios dos diferentes antigos vice-reinos hispano-americanos, cerca de 26 ou 27 universidades em funcionamento – e, como se sabe, as primeiras universidades brasileiras só seriam inauguradas um século mais tarde (Saviani, 2010).
Com efeito, conforme análise de Cunha (2007), a Coroa lusitana inibiu o desenvolvimento do Ensino Superior na sua colônia americana. Com a ausência de universidades na América portuguesa, o vínculo de dependência desta para com a metrópole era reforçado pela concessão de bolsas de estudos para os colonos americanos estudarem em Coimbra, centro da formação intelectual do universo português.
Na busca de respostas para compreensão desse fenômeno, Cunha (2007) elenca outros fatores que se somam à hipótese inicial deste estudo, quiçá complementando-a. Para além das características próprias da administração colonial de cada um dos reinos ibéricos, suas constituições internas teriam sido determinantes nos rumos das políticas educacionais para os respectivos territórios sob seus domínios.
Geograficamente menor e com uma população reduzida – quando em comparação com a Espanha, que possuía já no século XVI as universidades de Salamanca, Valença, Lérida, Barcelona, Santiago de Compostela, Valladolid, Oviedo e Alcalá –, o reino de Portugal, que contava apenas com uma universidade[7], não dispunha de recursos docentes suficientes para se permitir implementar uma política educacional de nível superior em um território ultramarino que excedia em muito suas próprias dimensões territoriais.
Mas isso não significa, contudo, que nenhuma medida tenha sido desenvolvida em favor da educação de nível superior no Brasil em sua fase colonial.
Nesse período, a Igreja de Roma estava incorporada na burocracia estatal dos países católicos, complementando o desenvolvimento de políticas nos setores em que os poderes institucionais seculares ainda não tinham desenvolvido braços administrativos. De forma estratégica, essa união possibilitava que a Igreja Católica mantivesse uma forte influência no mundo ocidental ao mesmo tempo que reforçava ideologicamente os discursos hegemônicos das classes sociais dominantes em torno das monarquias absolutistas, legitimando-as.
Nos reinos em que se instituiu o padroado, caso de Portugal, essa verdadeira simbiose figurava ainda mais vital para ambos, Estado e Igreja. Assim, na conjuntura do movimento da Contrarreforma, a ação educativa dirigida pela Igreja e por suas ordens religiosas – que tinham por finalidade a sacralidade da sociedade na ótica do “orbis christianus” (Paiva, 2000)[8] – serviu aos interesses laicos da metrópole no estabelecimento de relações desiguais com a colônia, caracterizadas pelo Pacto Colonial e pelo Mercantilismo.
Em outras palavras, catequese, educação e colonização estavam interconectadas na empresa colonialista levada a cabo pelos Estados absolutistas (Saviani, 2019), em uma fase da história da educação que pode ser nomeada como educação pública religiosa. Segundo a análise de Lombardi e Colares (2020, p. 16),
[...] o projeto civilizatório burguês, sob Portugal, encontrou no Brasil Colônia um ambiente propício para sua implantação. Estado e Igreja juntos na empreitada [...] Era necessário para os fins da colonização que buscassem formas de aproximação que resultassem na colaboração - espontânea ou forçada - do habitante nativo. [...] Esse foi o objetivo de um processo educativo que, de modo geral, se confundia com a catequese.
Nesse sentido, a ausência de uma universidade nos territórios luso-americanos foi compensada, ao menos em parte, pela oferta de cursos de formação superior ministrados pelas ordens religiosas regulares. Ao lado das forças militares – que ofereciam aulas de artilharia voltadas para a formação dos seus quadros internos nos principais fortes situados na extensa faixa litorânea da colônia –, franciscanos, beneditinos e carmelitas mantinham em seus conventos e seminários cursos de Artes e Teologia para a formação do clero regular e secular.
Dentre as diversas ordens religiosas, teve grande destaque no universo lusitano a Companhia de Jesus, fundada em 1534 pelo basco Inácio de Loyola[9]. Com a estratégia de reforçar o catolicismo por meio da educação e expandi-lo pela catequese, rapidamente seu aparato educacional passou a atender a demandas que extrapolaram as necessidades de formação dos quadros internos, adaptando-se a uma funcionalidade colonizadora e à realidade das diferentes camadas sociais da América portuguesa.
Passado um período inicial de adaptação às condições internas para organização dos trabalhos pedagógicos, esse estágio da chamada “pedagogia brasílica” seria substituído a partir do século XVII por uma normatização das medidas educacionais dos inacianos expressa pela Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Iesu (Plano e organização de estudos da Companhia de Jesus), mais conhecida como Ratio Studiorum (Saviani, 2019).
Fundamentado pela escolástica e por uma concepção pedagógica tradicional religiosa e centralizado no ensino das Humanidades, o documento – publicado no ano de 1599 – institucionalizou a pedagogia jesuítica no âmbito internacional, possibilitando a conformação das comunidades coloniais na chamada civilização ocidental irradiada pelas potências ultramarinas europeias. Com a adoção de um plano de estudos comum a todas as instituições nas mais diferentes partes do mundo,
[...] pode-se dizer que a Companhia passara a funcionar segundo padrões culturais e pedagógicos supranacionais, que inseriram os meninos da colônia no mundo ocidental e, reciprocamente, punham em circulação, aqui, as representações e práticas educacionais e culturais do além-mar (Hilsdorf, 2011, p. 9).
Os colégios jesuítas na América portuguesa promoviam quatro graus de ensino sucessivos e propedêuticos, com a oferta dos cursos Elementar, de Humanidades, de Artes e de Teologia. Conforme análise de Cunha (2007), os chamados estudos superiores – ou seja, Artes e Teologia – correspondiam aos estudos universitários da época, com os mesmos planos que os jesuítas utilizavam no velho continente e os mesmos rituais das universidades europeias.
Entre os 17 colégios fundados pelos jesuítas nos territórios do Brasil colonial, ao menos 8 ofereciam essa formação aos colonos – filhos de burocratas metropolitanos, latifundiários, estancieiros, grandes mercadores e negociantes das áreas mineradoras –, que, após concluírem seus estudos na colônia, complementavam a formação superior na Universidade de Coimbra[10].
Dessa maneira, com destaque para o Colégio da Bahia – situado na cidade de Salvador, onde se concentrava a maior parcela dos estudantes brasileiros do Ensino Superior em meados do século XVIII –, os filhos dos colonos que ocupavam lugares privilegiados na sociedade colonial podiam recorrer à formação de nível superior nos colégios jesuítas localizados nas cidades do Rio de Janeiro, Olinda, Recife, São Luís, Belém, São Paulo e Mariana, além de Salvador, já citada.
No bojo do movimento iluminista que irradiava a partir dos centros urbanos da Europa no decorrer do setecentos, o centro do Império Português também buscou adaptar-se ao espírito dos novos tempos, promovendo a reforma de sua estrutura administrativa em uma série de medidas que ficariam conhecidas em seu conjunto como despotismo esclarecido.
Esse processo, no campo econômico, significava libertar os modos de produção de alguns entraves típicos do Antigo Regime para possibilitar o desenvolvimento do mercado interno e da acumulação de capital no interior da metrópole, até então em posição desfavorável em relação aos acordos estabelecidos com o Império Britânico. Implicava, igualmente, no campo cultural, a incorporação das ideologias legitimadoras da formação de uma sociedade capitalista, elaborada em moldes nacionais.
Para tanto, foi necessário às monarquias absolutistas um processo de secularização do Estado, no qual a formação do súdito viesse preceder a formação do fiel. No campo educacional, essa nova fase da educação pública estatal foi caracterizada pela transferência gradual da tarefa educativa da alçada da Igreja para a do Estado, que passou a promovê-la como política pública com objetivos próprios, com vistas sobretudo à formação de quadros burocráticos para o bom funcionamento do aparato estatal, a exemplo dos funcionários públicos e dos oficiais militares (Lombardi; Colares, 2020).
No universo lusitano, esse processo de modernização ideológica, política e econômica ganhou corpo durante o período pombalino, no qual o primeiro-ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, mais conhecido pelo título de Marquês de Pombal, esteve à frente da administração pública no reinado de D. José I. As reformas pombalinas da instrução pública ficaram marcadas pela ruptura com o sistema educacional jesuítico, em decorrência da expulsão da Companhia de Jesus dos territórios do Império Português por meio do Alvará Régio de 28 de junho de 1759, que extinguiu as instituições de ensino e confiscou os bens patrimoniais dos inacianos, responsabilizando-os pelo atraso que os portugueses enfrentavam frente às outras nações civilizadas (Cunha, 2007)[11].
Em seu lugar foram instituídas as aulas régias a partir da organização das chamadas Humanidades, correspondente ao ensino secundário, com a criação de aulas avulsas de Latim, Grego, Retórica e Filosofia. A reforma dos estudos menores seria concluída com a criação das aulas de primeiras letras por meio da Carta de Lei de 6 de novembro de 1772, que instituiu as aulas régias de ler, escrever e contar (Saviani, 2019).
Outras importantes medidas seriam implementadas nesse período, como a fundação do Real Colégio dos Nobres, em 1761, onde seriam postas em prática as primeiras experiências do estabelecimento das novas disciplinas científicas em Portugal com o objetivo de capacitar a nobreza para assumir novas funções na direção e segurança do Estado, com sentido e finalidades burguesas.
Os estudos maiores seriam reformulados nos moldes da racionalidade crítica da época após a reelaboração dos estatutos da Universidade de Coimbra – implementados pela Carta Régia de 28 de agosto de 1772 – pela Junta de Providência Literária (Saviani, 2019). Na observação de Carvalho (1978, p. 155),
[...] a valorização do método experimental e do método matemático, o antiescolasticismo sistemático, o apego à história, à crítica e à hermenêutica, no tratamento das questões teológico-jurídicas, constituem os traços mais gerais do programa de renovação da cultura portuguesa proposto pela Junta de Providência Literária.
O ambicioso projeto pombalino para a construção de um sistema de ensino estatal – ao privilegiar o centro do Império Português, com medidas implementadas sobretudo no interior da metrópole lusitana[12] – abalou de maneira significativa o desenvolvimento das políticas de Ensino Superior nos territórios portugueses da América. Não obstante, o vácuo representado pela repentina saída dos jesuítas na esfera da educação foi gradualmente preenchido pela iniciativa de outras ordens religiosas, com destaque para os oratorianos, que desenvolviam métodos de ensino do latim a partir do vernáculo, em convergência com os interesses e necessidades do Estado (Cunha, 2007).
No último quartel do século XVIII, na cidade do Rio de Janeiro, a ordem dos franciscanos passou a oferecer formação em Filosofia e Teologia – o primeiro propedêutico ao segundo. Já na virada do século, apropriando-se do aparato material confiscado dos inacianos pela Coroa, o bispo Dom Azeredo Coutinho fundou o Seminário de Olinda, com a oferta do curso de Teologia, em uma abordagem racional e científica que evidencia uma proximidade de pensamento com a orientação filosófica das reformas que haviam sido empreendidas pelo Marquês de Pombal (Saviani, 2019).
Um novo Estado no Novo Mundo
O acirramento das tensões entre o Império Francês e o Britânico no início do século XIX colocou a Coroa Portuguesa em um verdadeiro dilema, visto que a decisão de alinhamento a um dos lados resultaria inevitavelmente no rompimento de relações com o lado preterido. Iminentemente ameaçada pela tropa francesa e pela armada inglesa, a manutenção da neutralidade frente a essa polarização de forças na disputa pela hegemonia europeia tornou-se insustentável após a imposição do bloqueio continental pelas forças napoleônicas, na tentativa de debilitar a economia inglesa por meio do fechamento dos portos europeus ao comércio realizado com o Império Britânico.
Possuindo um laço de dependência econômica longevo com a Inglaterra – com quem havia firmado uma série de tratados comerciais ao longo do século anterior –, a Coroa Portuguesa decide pela manutenção dessa aliança e promove um audacioso projeto de transferência da sede do Império Lusitano para sua porção mais rica, a colônia luso-americana, escapando da represália francesa[13].
A transposição da Corte para o Brasil entre fins de 1807 e início de 1808 promoveria uma série de profundas transformações na colônia, principalmente na cidade do Rio de Janeiro, onde a família real e a Corte se estabeleceram após rápida passagem por Salvador. A abertura dos portos às nações amigas – seguida pelos tratados de navegação e comércio assinados com a Inglaterra – indica, com o fim do pacto colonial, a intenção de desenvolvimento material da colônia e a possível longa permanência do núcleo administrativo do Império Português nessa região.
Para efetivar esse projeto, contudo, tornava-se imperativo edificar todo o aparato administrativo para o bom funcionamento do Estado, de forma a possibilitar a manutenção da sua autoridade, por meio da coesão e da coerção, nos mais longínquos recantos do vasto território colonial. E nessa perspectiva foram criados, a partir de 1808, cursos de formação para compor os quadros burocráticos do Estado, especialistas na produção de bens simbólicos e toda uma gama variada de profissionais liberais (Cunha, 2007).
O governo de Dom João, príncipe regente desde 1799, seria caracterizado por uma continuidade da política pombalina e evidenciado pela forte influência exercida pelo conselheiro e ministro Rodrigo de Sousa Coutinho, afilhado do Marquês de Pombal, na direção dos negócios do Estado durante e após a transferência da Corte para o Brasil. Sob essa orientação,
[...] já em 1808 foi criada a Academia Real de Marinha e, em 1810, a Academia Real Militar, destinadas a formar engenheiros civis e militares. Também em 1808 foram instituídas a aula de cirurgia na Bahia e de cirurgia e anatomia no Rio de Janeiro, organizando-se, em 1809, a aula de medicina, cujo objetivo era formar médicos e cirurgiões de que necessitavam o Exército e a Marinha. Ainda em 1808 surgem, na Bahia, as aulas de economia. Em 1812 temos a escola de serralheiros, oficiais de lima e espingardeiros em Minas Gerais, de agricultura e de estudos botânicos na Bahia e o laboratório de química no Rio de Janeiro, onde também foi criada em 1814 a aula de agricultura. Em 1817, surge o curso de química que englobava as aulas de química industrial, geologia e mineralogia e em 1818 o de desenho técnico, ambos na Bahia (Saviani, 2019, p. 137-138).
Algumas dessas instituições se apropriaram dos antigos estabelecimentos da Companhia de Jesus, como é o caso da Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro bem como da Escola de Cirurgia da Bahia, ambas acomodadas em hospitais militares que incorporaram a estrutura material dos antigos colégios jesuítas estabelecidos respectivamente no Morro do Castelo e no Terreiro de Jesus.
O declínio e queda de Napoleão no velho continente deu ensejo para que as vitoriosas coroas se reunissem entre fins de 1814 e meados de 1815 no Congresso de Viena para tratar do restabelecimento das alianças entre as linhagens da aristocracia nobiliárquica, de modo a viabilizar um novo equilíbrio de forças entre as potências europeias, favorecendo a estabilidade política após as convulsões sociais signatárias da Revolução Francesa.
Com vistas a formalizar a participação da monarquia portuguesa no congresso europeu, a Coroa promoveu sua colônia americana à condição de Reino Unido a Portugal e Algarves em 16 de dezembro de 1815, em uma significativa medida que confirmou a intenção de constituição de um grande império no Novo Mundo, iniciado com a transferência de sua sede administrativa para o Rio de Janeiro.
Com essa decisão, materializava-se a ideia de um Estado brasileiro pela junção dos antigos territórios coloniais do Grão-Pará e Maranhão e Brasil e cessava a hierarquia existente entre metrópole e colônia, com a nova concepção jurídica de união política entre estados em igualdade de condições. Não por acaso, datam desse período os primeiros projetos para o desenvolvimento de um sistema de ensino para o Estado do Brasil compreendido como uma unidade político-administrativa, ainda inserido, convém ressaltar, no universo imperial lusitano.
Sob encomenda de Dom João VI, o militar, matemático e político general Francisco de Borja Garção Stockler apresenta um projeto para organização da instrução pública no Brasil no ano de 1816, no qual previa a organização da educação escolar em 4 graus, denominados de Pedagogias, Institutos, Liceus e Academias (Fernandes, 1998). As Academias seriam dedicadas “ao ensino das Ciências, assim abstratas, como de observação, consideradas na sua maior extensão, e em todas as suas diversas relações com a ordem social” (Stockler, 1998, p. 157).
Outro importante documento sobre a instrução pública no período do Reino Unido foi a Memória sobre a Reforma dos Estudos na Capitania de São Paulo, elaborado por Martim Francisco Ribeiro de Andrada, famoso político paulista que, junto com seus irmãos Antônio Carlos e José Bonifácio, teve expressiva atuação na vida pública nacional nos conturbados tempos da emancipação política do País (Andrada, 1946).
Nessa proposta a instrução pública é organizada em três graus – o terceiro é concebido com caráter científico, para “formar os homens destinados pela natureza ao melhoramento da espécie humana por meio de novas descobertas, seu adiantamento, e multiplicação” (Andrada, 1945, p. 468).
Apesar de não terem sido implementadas, as propostas são fundamentais para a compreensão das políticas educacionais do período, pois revelam o diálogo estabelecido por autoridades, intelectuais e educadores nacionais com os principais debates acerca da educação pública em voga na Europa naquela época, como é o caso da adaptação das ideias de Condorcet nos projetos do general Stockler e de Martim Francisco e das traduções do famoso método de ensino elaborado por Andrew Bell e Joseph Lancaster realizadas por Antonio Falcão de Frota e Eusébio Vanério (Neves, 2003).
A eclosão da Revolução do Porto, em 1820, iniciada como um levante militar, canalizou os descontentamentos generalizados das diferentes camadas da sociedade em Portugal, que, reunidas na Junta Provisória do Governo do Reino, convocaram as Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, configuradas como um parlamento composto por representantes das diversas partes do Império com o objetivo de reestruturar o pacto social lusitano por meio de uma carta constitucional nos moldes do liberalismo político do período.
No Brasil, as delegações representavam as populações de cada uma das capitanias, elevadas à condição de províncias durante a Constituinte de Lisboa. Dentre as diferentes proposições discutidas no decorrer do soberano congresso, destaca-se no campo educacional a proposta apresentada pela delegação da Província de São Paulo, que continha diretrizes para a organização da instrução pública assemelhadas ao projeto defendido anteriormente por Martim Francisco Ribeiro de Andrada.
Com relação ao Ensino Superior, o programa paulista recomendava a criação de ao menos uma universidade no Reino Unido do Brasil, podendo ser instalada na cidade de São Paulo – que, além de possuir bons ares, tinha em disponibilidade as dependências dos conventos do Carmo, de São Francisco e de São Bento (Bonifácio, 1821).
Não obstante, as dificuldades em encontrar um denominador comum entre as distintas concepções de nação – compreendida como fundamentada pela tradição na ótica dos portugueses e defendida como uma repactuação contratual pelos representantes brasileiros – defendidas pelos parlamentares nas Cortes de Lisboa levaram ao desgaste irreconciliável das negociações entre as partes, tendo como desenlace a emancipação política do Brasil no ano de 1822 (Berbel, 1999).
Com a repentina independência política, as classes em torno do príncipe regente então à frente do Reino Unido do Brasil viram-se com o desafio de dar continuidade à construção do Estado brasileiro – agora, porém, apartado do restante do universo lusitano – e torná-la viável. Embasado pelo conceito de Estado-Nação emergente com o Século das Luzes e a Revolução Francesa, que haviam colocado a nação como fonte do direito, o jovem país promoverá ao longo do período monárquico uma política educacional correspondente a essa nova fase, denominada de educação pública nacional, “que passou a ter por objetivo a formação do cidadão, a educação cívica e patriótica do indivíduo, tendo um caráter essencialmente popular, elementar, primário” (Lombardi; Colares, 2020, p. 14).
O Ensino Superior no Império do Brasil
O desfecho da constituinte vintista em Lisboa tornou imperativo ao jovem Estado brasileiro a reconstrução do pacto social e político para legitimar a manutenção da integridade territorial da antiga colônia portuguesa na América na forma de um Estado-Nação moderno. E, entre os vários projetos políticos para o novo país, tornou-se hegemônico no decorrer da década de 1820 o plano assentado nas proposições do liberalismo clássico para constituição de uma monarquia constitucional representativa, encabeçado pelas vertentes liberais moderadas das classes influentes da região sudeste do Brasil, que orbitavam o centro administrativo do novo Estado no Rio de Janeiro (Dolhnikoff, 2005).
Reunidos na Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil em 1823, agora como representantes da nação brasileira, os deputados instituíram na sessão de 10 de maio uma comissão de instrução pública que, ao longo dos trabalhos na Assembleia Nacional, apresentaria dois projetos de lei.
O Projeto de Lei n.o 13 versa sobre a instituição de um prêmio para aquele que apresentasse o melhor Tratado Completo da Educação da Mocidade Brasileira, com a organização de um plano de ensino comum para todo o território nacional. É nesse contexto que o deputado Martim Francisco Ribeiro de Andrada, membro da comissão de instrução pública, reapresenta sua Memória sobre a reforma dos estudos da Capitania de São Paulo, agora como uma proposta de alcance nacional, obtendo parecer favorável da comissão competente em sessão de 7 de julho de 1823 (Brasil, 1874a).
Já com referência específica ao Ensino Superior, após intenso debate iniciado na sessão de 14 de junho, que incluiu a defesa de um esboço apresentado por José Bonifácio para organização e regime das universidades no Brasil, o soberano congresso alcançou o consenso na sessão de 4 de novembro, com o Projeto de Lei n.o 26, que previa a criação de duas universidades, uma na cidade de Olinda e outra na capital de São Paulo, com início imediato dos cursos jurídicos (Peres, 2010).
O segundo projeto, contudo, não chegará a ser promulgado. O acirramento dos debates em torno da liberdade de imprensa; o forte caráter liberal do esboço da Constituição apresentado pelo deputado Antônio Carlos; e o declínio de influência dos irmãos Andrada em decorrência do posicionamento de José Bonifácio sobre a necessidade do fim do escravismo culminaram na dissolução da Constituinte em 12 de novembro de 1823, no episódio conhecido como Noite da Agonia.
Dissolvida a Assembleia, a carta magna do Império do Brasil seria outorgada no ano seguinte, em 25 de março de 1824. Elaborada pelo Conselho de Estado, a primeira Constituição do jovem país contempla a instrução pública no título que versa sobre as disposições gerais e garantias dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros. Em seu artigo 179, que trata da inviolabilidade dos direitos dos cidadãos, afirma-se: “XXXII. A instrução primária e gratuita a todos os cidadãos. XXXIII. Colégios, e Universidades, onde serão ensinados os elementos das Ciências, Belas Letras e Artes” (Brasil, 1886, p. 35).
Após a retomada dos trabalhos do Legislativo[14], em maio de 1826, a demanda pela constituição de um sistema de ensino ressurgirá nos debates parlamentares, levando à apresentação de novos projetos de lei. Influente cônego e intelectual brasileiro, o deputado Januário da Cunha Barbosa elaborou e defendeu, como membro da comissão de instrução pública da nova legislatura, um plano geral para a educação brasileira na sessão de 16 de junho daquele ano.
Reunindo e adaptando ao cenário nacional as principais discussões educacionais do período, o projeto do cônego Cunha Barbosa previa a organização do ensino em quatro graus distintos, chamados de Pedagogias, Liceus, Ginásios e Academias. Neste último, destinado à educação superior, “se ensinarão as ciências abstratas e as de observação, consideradas na sua maior extensão e em todas as mais diversas relações com a ordem social, compreendendo-se além disto o estudo das ciências morais e políticas, contempladas debaixo do mesmo ponto de vista” (Brasil, 1874b, p. 151).
Apesar dos debates e da constatação da necessidade de instituição de um plano geral para a instrução pública pelos representantes da nação, a regulamentação dos princípios educacionais definidos como direitos do cidadão pela carta maior do Império só seria organizada por leis gerais no ano seguinte.
Além da Lei Geral de 15 de outubro de 1827, que “manda criar escolas de primeiras letras em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos do Império” (Brasil, 1878a, p. 71), organizadas pelo método de Lancaster, pouco tempo antes, naquele mesmo ano, a Lei Geral de 11 de agosto de 1827 havia determinado a criação de “dois Cursos de Ciências Jurídicas e Sociais, um na cidade de São Paulo e outro na de Olinda” (Brasil, 1878a, p. 6).
Organizados em 9 cadeiras e com duração de 5 anos, os cursos jurídicos exigiam do estudante interessado a comprovação da idade mínima de 15 anos e a aprovação nos exames de Língua Francesa; Gramática Latina; Retórica; Filosofia Racional e Moral; e Geometria, cujos estudos preparatórios seriam oportunamente criados pelo Governo Geral. Por fim, a conclusão dos cursos de Ensino Superior conferia os graus de bacharel e doutor aos formandos.
Inspirados na Universidade de Coimbra, os cursos jurídicos visavam, para além da formação de juristas e advogados, a preparação dos quadros intelectuais especialistas da burocracia do Estado, figurando – ao lado das academias reais das corporações militares (Real Academia dos Guarda-Marinhas e Academia Real Militar), das escolas de medicina da Bahia e do Rio de Janeiro e da Academia Imperial das Bellas Artes – como lugares de formação dos deputados, dos senadores e dos diplomatas brasileiros que compuseram a classe política da monarquia no decorrer do século XIX.
No caso específico dos cursos jurídicos, estes foram fundamentais no processo de construção de um aparato legislativo e de uma cultura jurídica próprias, elementos cruciais para o novo ordenamento constitucional que se pretendia efetivar para a consolidação da independência política e o desenvolvimento do Estado nacional.
Com o início do período regencial, após o desgaste político que culminou com a abdicação de Dom Pedro I em 1831, todo o aparato educacional de nível superior passaria por uma revista pelos poderes executivo e legislativo, que reformulariam os estatutos dos cursos superiores, imprimindo-lhes as características gerais com as quais iriam funcionar ao longo do período monárquico.
Os estatutos dos cursos de Ciências Jurídicas e Sociais foram aprovados por meio do Decreto de 7 de novembro de 1831, incorporando à estrutura das academias jurídicas as cadeiras das disciplinas exigidas para ingresso na instituição (Brasil, 1875a)[15]. Novas modificações nos estatutos seriam implementadas a partir de meados do século XIX, nos anos: 1853 (Decreto n.o 1134, de 30 de março de 1853), 1854 (Decreto n.o 1386, de 28 de abril de 1854), 1855 (Decreto n.o 1568, de 24 de fevereiro de 1855), 1865 (Decreto n.o 3454, de 26 de abril de 1865), 1879 (Decreto n.o 7247, de 19 de abril de 1879) e 1885 (Decreto n.o 9360, de 17 de janeiro de 1885; e Decreto n.o 9522, de 28 de novembro de 1885).
De forma sumária, entre as alterações mais significativas nesse rol de medidas legais para os cursos jurídicos, ressaltam-se a adoção da denominação de Faculdades de Direito em 1853; a criação da congregação dos lentes e a transferência da faculdade de Olinda para Recife, em 1854, no contexto das reformas educacionais do ministro Couto Ferraz; e a divisão do curso em dois – um de Ciências Jurídicas e outro de Ciências Sociais – a partir de 1865.
Com relação ao ensino médico, as academias médico-cirúrgicas localizadas nas cidades de Salvador e Rio de Janeiro foram reformuladas por meio da Carta de Lei de 3 de outubro de 1832. Inspiradas pelo modelo da Faculdade de Medicina de Paris – cujos estatutos adotaram interinamente –, as academias agora renomeadas como Escolas ou Faculdades de Medicina passaram a ter como objetivos a institucionalização da prática médica acadêmica e a atuação como órgão regulador do seu campo profissional (Brasil, 1874c).
Compostas cada uma de 14 professores e 6 substitutos, as Faculdades de Medicina ofereciam a formação para doutor em Medicina, farmacêutico e parteira – extinguiu-se a formação para sangrador. Conforme definido pelo artigo 13, “sem título conferido, ou aprovado pelas ditas Faculdades, ninguém poderá curar, ter botica, ou partejar, enquanto disposições particulares, que regulem o exercício da Medicina, não providenciarem a este respeito” (Brasil, 1874c, p. 89).
Para ingresso nos diferentes cursos, o estudante deveria comprovar ter a idade mínima de 16 anos e ser aprovado nos exames preparatórios realizados nas dependências das faculdades. Para o curso de doutor em Medicina era necessária a aprovação nos exames de Latim e Língua Francesa ou Inglesa, Filosofia Racional e Moral, Aritmética e Geometria. Já para o curso de farmacêutico era obrigatória a aprovação nos exames de Língua Francesa ou Inglesa, Aritmética e Geometria. Finalmente, a mulher que desejasse se matricular no curso de parteira deveria comprovar saber ler e escrever corretamente e apresentar um atestado de bons costumes passado pelo Juiz de Paz da sua respectiva freguesia (Brasil, 1874c).
Durante o período em que Luiz Pedreira do Couto Ferraz esteve à frente da pasta da Secretaria de Estado dos Negócios do Império, foram realizadas muitas reformas educacionais com vistas a imprimir maior uniformidade nas políticas educacionais nos âmbitos provincial e geral[16]. Nessa conjuntura reformista, as escolas de medicina receberam novos estatutos por meio do Decreto n.o 1387, de 28 de abril de 1854, a partir do qual as instituições foram renomeadas como Faculdades de Medicina (Brasil, 1854).
Assim como as Faculdades de Direito, ao longo do Segundo Reinado os estatutos das Faculdades de Medicina foram modificados reiteradas vezes, nos anos: 1856 (Decreto n.o 1764, de 14 de maio de 1856), 1865 (Decreto n.o 3464, de 29 de abril de 1865), 1875 (Decreto n.o 2649, de 22 de setembro de 1875), 1876 (Decreto n.o 6203, de 17 de maio de 1876), 1879 (Decreto n.o 7247, de 19 de abril de 1879), 1881 (Decreto n.o 8024, de 12 de março de 1881), 1882 (Lei n.o 3140, de 30 de outubro de 1882), 1883 (Decreto n.o 8850, de 13 de janeiro de 1883; Decreto n.o 8918, de 31 de março de 1883; Decreto n.o 8995, de 25 de agosto de 1883; e Decreto n.o 9093, de 22 de dezembro de 1883) e 1884 (Decreto n.o 9311, de 25 de outubro de 1884).
Os estatutos da Academia das Belas Artes foram definidos pelo Decreto de 30 de dezembro de 1831. Com uma equipe formada por cinco professores e quatro substitutos, a academia destinava-se aos jovens entre 12 e 18 anos de idade e estava aberta para os alunos ouvintes. A academia oferecia os cursos de “pintura histórica, paisagem, arquitetura, escultura; mas além destas quatro divisões haverá também uma aula de desenho, e outra de anatomia e fisiologia, própria e necessária destes ramos” (Brasil, 1875b, p. 95).
No contexto das reformas educacionais de Couto Ferraz, a instituição recebeu novos estatutos por meio do Decreto n.o 1603, de 14 de maio de 1855, que estabeleceu as formações em Arquitetura, Escultura, Pintura, Ciências Acessórias e Música (Brasil, 1856). Pouco tempo depois, novas alterações seriam implementadas por meio do Decreto n.o 2424, de 25 de maio de 1859, que dividiu o ensino da academia em dois cursos, um noturno e outro diurno, respectivamente com ênfases prática e artística (Brasil, 1859).
Com relação à Academia Militar, após um breve período em que esteve reunida como uma só instituição na Academia dos Guarda-Marinhas, em decorrência do Decreto de 9 de março de 1832, foi restabelecida como unidade e teve estatutos definidos por meio do Decreto de 22 de outubro de 1833. Conforme definido pelo artigo 71, os estudos promovidos pela instituição destinavam-se à formação em dois cursos diversos: “1º Um curso militar para os oficiais das três armas principais do Exército; 2º Um curso completo para oficiais engenheiros de todas as classes” (Brasil, 1873 p. 151).
A coexistência da formação de engenheiros civis e militares em uma mesma instituição resultou em uma trajetória errática para a Academia Militar, que teve seus regulamentos modificados inúmeras vezes ao longo do período monárquico – incluindo a alteração do seu nome para Escola Militar, em 1839; e Escola Central, em 1858 –, nos anos: 1835 (Decreto de 23 de fevereiro de 1835), 1839 (Decreto n.o 25, de 14 de janeiro de 1839), 1842 (Decreto n.o 140, de 9 de março de 1842), 1845 (Decreto n.o 404, de 1º de março de 1845), 1846 (Decreto n.o 476, de 29 de setembro de 1846), 1855 (Decreto n.o 1534 e Decreto n.o 1536, ambos de 23 de janeiro de 1855), 1858 (Decreto n.o 2116, de 1º de março de 1858), 1860 (Decreto n.o 2582, de 21 de abril de 1860) e 1863 (Decreto n.o 3083, de 28 de abril de 1863).
A partir da Lei n.o 2261, de 24 de maio de 1873, a Escola Central passou para a alçada da Secretaria de Estado dos Negócios do Império, o que possibilitou sua reorganização no ano seguinte como Escola Politécnica. Conforme os estatutos aprovados por meio do Decreto n.o 5600, de 25 de abril de 1874, a nova instituição seria composta por um curso geral e pelos cursos especiais de Ciências Físicas e Naturais, Ciências Físicas e Matemáticas, Engenheiros Geógrafos, Engenharia Civil, Curso de Minas e Curso de Artes e Manufaturas (Brasil, 1875c).
Por sua vez, todo o sistema das escolas do Exército foi reorganizado por meio do Decreto n.o 5529, de 17 de janeiro de 1874. Transferindo-se para as instalações da Escola de Aplicação localizada na Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, a Escola Militar passou a oferecer os cursos de infantaria e cavalaria, de artilharia, de estado maior da 1.a classe e de engenharia militar (Brasil, 1875c).
Finalmente, além das engenharias oferecidas pela Escola Politécnica e pela Escola Militar, foi instituída, por meio do Decreto n.o 6026, de 6 de novembro de 1875, a Escola de Minas, na cidade de Ouro Preto, com a finalidade de “preparar engenheiros para a exploração das minas e para os estabelecimentos metalúrgicos” (Brasil, 1876, p. 701).
Durante a gestão de Carlos Leôncio de Carvalho como titular da pasta da Secretaria de Estado dos Negócios do Império, o Governo Geral procurou promover uma nova reforma do conjunto da instrução pública por meio do Decreto n.o 7247, de 19 de abril de 1879. No campo do Ensino Superior, a reforma apresentava proposições inovadoras, como suspensão da frequência obrigatória, exames livres e autorização para criação de faculdades particulares segundo os modelos e os exames oficiais (Brasil, [1880?]).
Contudo, a reforma não chegou a ser plenamente implementada, dado o escalonamento da longa crise que enfrentava o regime monárquico em sua incapacidade de adaptar-se às mudanças estruturais pelas quais o País passava em seu processo de transição econômica no último quarto do século.
De forma sumária, os cursos superiores desenvolvidos pelo Brasil como país independente, no decorrer do século XIX, visavam consolidar o processo de formação do Estado-Nação por meio do desenvolvimento de uma cultura jurídica própria; da atuação dos magistrados; e da formação de uma classe intelectual coesa, capaz de encaminhar o desenvolvimento econômico nacional orientado segundo o modelo industrial das potências europeias.
Com o advento dos conceitos de cidadania e igualdade de direitos, a manutenção da escravidão e da grande desigualdade social teve suporte ideológico nas novas concepções de sucesso individual e nas justificativas liberais das distintas capacidades intelectuais de cada sujeito. Embasados pela ideia de que a cada classe social corresponderia um nível de ensino, doutores e bacharéis usufruíam de um prestígio social que os habilitava a ocupar as posições de mando na sociedade monárquica.
Dessa forma, ao longo do Segundo Reinado, a classe política que representava a nação e dirigia os rumos do Estado recrutou seus novos quadros majoritariamente entre os concluintes dos cursos de Medicina, das Faculdades de Direito e das Engenharias, ou seja, nas chamadas “profissões imperiais” – termo cunhado por Coelho (1999).
Considerações finais
Embora as primeiras universidades nacionais só tenham sido criadas no início do século XX, o ensino de nível superior esteve presente no Brasil em diferentes períodos de sua história e nas distintas fases que caracterizam a educação pública na era moderna.
Nos primeiros tempos do colonialismo, quando a Igreja compunha a burocracia do Estado absolutista enquanto o legitimava, a ação educativa das ordens religiosas – com destaque para a Companhia de Jesus – auxiliou no processo de inserção das classes influentes dos territórios colonizados na cultura cristã europeia, preparando-as para a continuidade dos estudos na Universidade de Coimbra; e na reprodução da ideologia colonizadora no Novo Mundo.
Já no Século das Luzes, com a nova racionalidade propagada pelo movimento iluminista, o Estado inicia o processo de estatização da tarefa educativa, com a finalidade de modernização de seu aparato administrativo. Apesar de a política das aulas régias não ter tido largo alcance efetivo nos territórios da América lusitana, os estabelecimentos de ensino confiscados dos inacianos e transferidos para o controle de outras ordens religiosas foram adaptados para atendimento das novas demandas, a exemplo do ensino do latim em vernáculo pela ordem dos oratorianos ou do aproveitamento das dependências como hospitais militares, precursores das escolas de medicina.
Ainda sob a fase da educação pública estatal seriam implementadas as primeiras instituições de Ensino Superior propriamente do Estado após a transferência da Coroa Portuguesa para o Rio de Janeiro, em atendimento à necessidade de constituição de um corpo burocrático para a máquina do Estado que se pretendia desenvolver na antiga colônia, elevada subitamente à condição de Reino Unido.
A ruptura do pacto social lusitano nas Cortes de Lisboa, por sua vez, levou as classes dirigentes do novo Estado que se formava a promover uma política educacional em convergência com a nova fase da educação que se iniciava com a queda do Antigo Regime no mundo ocidental. Aos poderes constituídos passava a ser imperioso favorecer, com uma educação pública nacional, a formação do cidadão e do sentimento de pertencimento a uma nacionalidade.
Em todas essas fases o Ensino Superior pode ser compreendido com o sentido atribuído por Cunha (2007) em sua análise sobre a gênese e o desenvolvimento desse nível de ensino no Brasil. Conforme os critérios de interpretação propostos pelo pesquisador, que opera no entrecruzamento entre a sociologia e a história, visando a análise e crítica do fenômeno escolar brasileiro, o ponto em comum – unificador do Ensino Superior em todas essas fases – é a função de ministrar um saber tido como superior e dominante, determinado historicamente.
Sob essa perspectiva, a análise do processo de desenvolvimento do Ensino Superior no Brasil pode contribuir para a compreensão dos mecanismos de legitimação dos discursos hegemônicos das classes influentes na composição dos poderes constituídos nos diferentes períodos da nossa trajetória histórica, com ênfase em sua função reprodutivista. Não obstante, sob um outro prisma que enfatize a constatação das contradições inerentes a todo processo educativo, poderá a mesma investigação localizar, até no próprio conteúdo do ensino, as contraposições internas ao fenômeno que auxiliam na compreensão da superação desse saber dominante e das relações sociais que a sustentam.
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Submissão: 03.09.2024.
Aprovação: 24.04.2025.
[1] Este trabalho situa-se no âmbito das pesquisas realizadas durante a elaboração da tese de doutorado intitulada A Educação na gênese do Estado-Nação brasileiro (1750-1889), desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos, campus Sorocaba.
[2] Universidade Federal de São Carlos, Sorocaba: andrewrs@ufscar.br.
[3] Universidade Federal de São Carlos, Sorocaba: lucscoutinho@ufscar.br.
[4] No trabalho elaborado em finais da década de 1970, em um momento em que os pesquisadores marxistas pretendiam superar criticamente as teorias da reprodução então em voga como chaves explicativas do fenômeno educativo, Cury (1986) desenvolve uma tese, fundamentada nos pressupostos teóricos gramscianos, que recupera a perspectiva dialética da educação como processo histórico. As categorias relacionadas no estudo são: contradição, totalidade, mediação, reprodução e hegemonia.
[5] Ao identificar e distinguir as principais características da colonização europeia no continente americano entre aquelas que se desenvolveram em regiões de zona temperada daquelas realizadas em zonas tropicais, Prado Júnior (1993, p. 22-23) observa que “no seu conjunto, e vista no plano mundial e internacional, a colonização dos trópicos toma o aspecto de uma vasta empresa comercial, mais complexa que a antiga feitoria, mas sempre com o mesmo caráter que ela, destinada a explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio europeu. É este o verdadeiro sentido da colonização tropical, de que o Brasil é uma das resultantes; e ele explicará os elementos fundamentais, tanto no social como no econômico, da formação e evolução histórica dos trópicos americanos”.
[6] Nesse sentido, a particularidade da administração colonial lusitana na América resultou no desenvolvimento de identidades regionais que expressavam a diversidade em diferentes formas, a depender do referencial adotado. Em estudo acerca da emergência da identidade nacional brasileira, Jancsó e Pimenta (2000, p. 398) ressaltam três distinções: “a primeira é aquela que distinguia um português da América (p. ex: um bahiense) de todos que não fossem portugueses (holandeses, franceses, espanhóis). A segunda, simultânea com a anterior, é a que lhe permite distinguir-se, ao bahiense, de outros portugueses (p. ex: do reinol, do paulista). Finalmente, aqueles que são americanos dos que não partilham essa condição”.
[7] A universidade portuguesa situava-se inicialmente em Lisboa, fundada em 1290 pelo rei Dom Dinis. Após algumas transferências provisórias, em 1537 seria definitivamente instalada em Coimbra, durante o reinado de Dom João III. Posteriormente o reino receberia também a Universidade de Évora (Rodrigues; Fiolhais, 2013).
[8] Nessa concepção de mundo cristã, conforme observação de Paiva (2000, p. 1), “todos realizavam, no que lhes era próprio, o reino de Deus: o rei governando, o padre rezando, o soldado guerreando, o comerciante tratando, a mulher guardando a casa. Nada havia que não pertencesse à esfera do sagrado, tal como era compreendido”.
[9] Sobre a ação missionária e educativa do clero regular na colônia, Saviani (2019, p. 68) informa que uma variada gama de ordens religiosas esteve presente no processo de colonização da América portuguesa, como os franciscanos, os beneditinos, os carmelitas, os mercedários, os oratorianos e os capuchinhos: “Contudo, essas diferentes congregações religiosas operaram de forma dispersa e intermitente, sem apoio e proteção oficial, dispondo de parcos recursos humanos e materiais e contando com o apoio das comunidades e, eventualmente, das autoridades locais. Diferentemente, os jesuítas vieram em consequência de determinação do rei de Portugal, sendo apoiados tanto pela Coroa Portuguesa como pelas autoridades da colônia. Nessas circunstâncias, puderam proceder de forma mais orgânica, vindo a exercer virtualmente o monopólio da educação nos dois primeiros séculos da colonização”.
[10] Até 1689, os cursos superiores oferecidos pelos inacianos nos territórios coloniais, embora reconhecidos pelo direito pontifício, necessitavam de uma revalidação pelo direito civil do reino português. Após longa campanha de reivindicação de equiparação de igualdade, uma carta régia daquele ano concedeu o estatuto civil aos colégios jesuítas na América, equiparando-os aos demais, sem que houvesse a necessidade de cursos complementares para ingresso nos cursos de Direito, Cânones, Medicina e Teologia na Universidade de Coimbra (Cunha, 2007).
[11] Entre outros motivos, Cunha (2007) aponta a defesa da moral casuística pelos jesuítas – que interpretavam como pecado a usura e o entesouramento – como um dos pontos cruciais que levaram ao rompimento das relações entre a Companhia de Jesus e a Coroa Portuguesa em seu processo de adequação ao capitalismo.
[12] Ao analisar a Lei de 6 de novembro de 1772, que define a distribuição das aulas régias para Portugal e seus domínios, Saviani (2019) informa que 88,7% do total previsto se destinava ao reino, isto é, Portugal, ao passo que um total de 5,1% era destinado aos territórios do Brasil colonial, distribuídos entre Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, Mariana, São Paulo, Vila Rica, São João del Rei, Pará e Maranhão.
[13] Sentindo os efeitos da longa crise do antigo sistema colonial, a fundação de um império luso-brasileiro – com centro administrativo localizado no novo continente – já havia sido anteriormente ventilada como possibilidade real para enfrentamento da decadência do reino e estratégia para impedir a emancipação dos ricos territórios coloniais (Vainfas, 2008).
[14] Nesse ínterim, por meio de um decreto expedido em 9 de janeiro de 1825, foi criado provisoriamente um curso jurídico na cidade do Rio de Janeiro, que não chegou a ser efetivamente instituído. Posteriormente, na ocasião da criação dos cursos jurídicos de Olinda e São Paulo, os estatutos redigidos para o curso provisório de 1825, elaborados por Luís José de Carvalho e Melo, Visconde da Cachoeira, foram adotados interinamente pelas Faculdades de Direito até a aprovação dos seus estatutos definitivos, no ano de 1831.
[15] Pouco tempo antes, a estrutura organizacional dos cursos havia sido ampliada com a criação de novos cargos administrativos por meio do Decreto de 30 de setembro de 1828 e do Decreto de 5 de novembro de 1828 (Brasil, 1878b).
[16] A emenda constitucional de 1834 havia descentralizado o ensino público, definindo que a organização da instrução primária e secundária de cada província seria competência dos governos provinciais, ao passo que a instrução primária e secundária do Município Neutro, bem como do Ensino Superior em todo o território nacional, caberia ao Governo Geral. Com a ausência de um sistema de ensino integrado, ao longo do Segundo Reinado o Governo Central buscou estabelecer diretrizes gerais capazes de promover alguma uniformidade nas políticas educacionais do período (Haidar, 2008).