Entrevista com o Professor Solon Viola: Cidadania Cosmopolita, uma expressão da soberania para uma outra cidadania global
Daianny Madalena Costa[1]
https://orcid.org/0000-0001-7045-0259
Alexandre Mumbach[2]
https://orcid.org/0000-0003-4687-7409
Rosangela da Silva Almeida[3]
https://orcid.org/0000-0002-4835-7565
Na tarde do dia 26 de agosto de 2024, o Professor Solon Eduardo Annes Viola concedeu-nos esta entrevista. Solon é Doutor e Mestre em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos/RS. Exerceu suas atividades profissionais em diversos colégios e universidades na região metropolitana de Porto Alegre. Até sua aposentadoria, foi Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unisinos. Nesta Universidade lecionou desde 1986, em diversos cursos de graduação e especialização. Durante a ditadura militar foi preso indo para um congresso da União Brasileira de Educação Secundária em outubro de 1969. Ficou um mês recluso em São Paulo e um mês no Rio Grande do Sul. Foi julgado e absolvido em um processo na Justiça militar. Atualmente, é docente do curso de especialização em Direitos Humanos e Políticas Públicas da Unisinos e faz parte da Rede Brasileira da Educação em Direitos Humanos (RBEDH), dedicando-se a palestras e escritas sobre a temática. Militante dos Direitos Humanos e Professor de História, é um crítico das estruturas autoritárias e anacrônicas do Estado brasileiro, principalmente no período da Ditadura Militar-Empresarial, como gosta de denominar.
Entrevistadores:
Em um primeiro momento, gostaríamos que pudesse nos contar como foi a sua caminhada até aqui, a sua relação com os Direitos Humanos, a sua formação docente. Como é que foi acontecendo isso na sua experiência? Como o Solon se constitui como Solon?
Professor Solon:
Eu fui criança numa pequena cidade de colonização italiana, chamada Garibaldi, na Serra gaúcha. Meu pai era ferroviário e minha mãe, esposa do meu pai e mãe dos seus filhos. São definições que caracterizam a maioria das mulheres daquela geração. Minha mãe, de qualquer maneira, era uma mulher de seu tempo, uma mulher de um valor imenso e rigorosa no processo de Educação.
No núcleo dos ferroviários, não havia ninguém que fosse da cidade. Dentre eles, havia uma família de negros e uma família de descendentes de indígenas. Em decorrência disso, no meio daqueles italianos “maravilhosos”, se constituiu uma cultura segundo a qual os ferroviários eram tutti quanti negri, traduzindo, “todos quantos os negros”. Portanto, essa minha pele vermelha, de tão branca, e esse sangue italiano e alemão que corre nas minhas veias, podia ser também um sangue africano. Bem, não era. Dessa descendência italiana, um imigrante italiano foi lutar na guerra do Paraguai. Lá, no extermínio do povo paraguaio, “sequestrou” uma jovem “guarani” na garupa de seu cavalo e a trouxe. Ela viria a ser minha antepassada. Então, eu tenho um sangue mestiçado, latino-americano.
Na adolescência, meu pai foi transferido para a cidade de Passo Fundo. Era o tempo de fechar as ferrovias, privilegiar o transporte rodoviário, e meu pai, mesmo sem saber bem a razão da mudança, teve que escolher uma cidade, tendo escolhido aquela em que estava a raiz e a família da minha mãe. Então, vamos para o Planalto do Rio Grande do Sul, no início de 1964. Foi uma surpresa encontrar uma cidade que, na época, devia ter ao redor de 50 a 70 mil pessoas, o que, para mim, era uma cidade gigantesca. Eu vou estudar nessa cidade. No dia primeiro de abril de 1964, indo para a escola, encontrei meu pai voltando do trabalho. Ele disse, “hoje você não vai para a escola, você volta para casa comigo. Nós temos muita coisa a fazer em casa”. E essas coisas que tínhamos que fazer em casa, era abrir no pátio um buraco e enterrar os jornais que meu pai tinha e os meus. Eu lia um jornal chamado Brasil Urgente, um jornal editado por grupos à esquerda, fossem eles socialistas ou comunistas, e católicos de esquerda. O editor era um padre dominicano, frei Catão. Eu lia esse jornal e lamentei muito ter que enterrá-los, não é? Eles não seriam recuperados, porque, antes de tapar o buraco, a gente os queimou.
Eu, então adolescente, fiquei achando, “poxa, essa vida vai ficar difícil”. E, mais ou menos neste momento, eu passei a fazer parte do movimento estudantil, numa das tantas correntes que então existiam. Fazer parte do movimento estudantil me fez questionar duas coisas. A primeira, pensar o meu lugar na escola e os estudos, e a segunda, me perguntar se não haveria como participar nos processos de lutas pela Democracia, de aprender o mundo para transformá-lo. Paulo Freire deveria ficar feliz em ouvir essa fala, não é? Sair pelo mundo, aprender o mundo, olhar para o mundo e, mesmo sem o entender bem, buscar formas de transformá-lo. Nessa fase da minha vida, chegavam ainda gravações de músicas internacionais, quatro pessoas cabeludas, cantando músicas muito aceleradas, falando em sonhos. E aí, tinha um sonho de liberdade. E, eu aqui, submetido a uma ditadura cruel e assassina. E, também aqui, músicas a denunciar, e a propor novos tempos de liberdades e sonhos.
E aí, fui me constituindo. Fazia o possível para passar de ano e normalmente conseguia, mas, também, ao dizer o que pensava, encontrava dificuldades com as escolas desse lugar. Então, de repente, na sequência de um ano, um ano e meio, não tinha mais lugar para mim em escolas. Houve um lugar, numa escola Metodista, em que eu achei que deveria romper o vínculo com ela. Então, o instituto Metodista, não me tirou, mas eu achei que, eticamente, não deveria continuar por lá, porque produzia uma inquietude na escola. Em algumas quintas-feiras, uma caminhonete do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) batia na porta do diretor, informando que estavam na escola para buscar a mim e a um colega, João Carlos Bonna Garcia, para prestar depoimento. Isso provocava, na escola entre colegas e professores, uma inquietude infinita. Aí, por bem, e depois para o bem da saúde da minha mãe também, que não suportava um carro parado na frente de casa e adoecia, eu resolvi sair da cidade.
Vim para Porto Alegre no começo de 1969 e nunca mais saí. Às vezes precisaria sair, mas, não tive coragem. Então, vivi aqui em Porto Alegre, meio procurando emprego e logo sendo tirado do emprego, e sem estudar. Fui, depois de algum tempo, passado talvez uma década, voltar a estudar, concluindo o que se chamava de segundo grau. Fiz vestibular e fui estudar História, primeiro na Universidade do Vale do Rio dos Sinos e posteriormente na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde fiz o curso de História e uma Especialização em História da América Latina. Enquanto fazia a graduação, comecei a dar aulas em cursinho. Fui dar aula no cursinho 99 que a UFRGS mantinha para os seus funcionários. Era um curso ligado ao Diretório Acadêmico. Dava aulas de História ali e logo fui convidado a dar aulas em duas escolas de elite da cidade de Porto Alegre.
Fazendo a especialização, passei a trabalhar em
faculdades. No tempo em que concluí a especialização, me inscrevi e realizei um
concurso para Professor de História na Unisinos, e fui aprovado. Estou falando
em 1986. Não era ainda “a Democracia”, mas já se podia trabalhar. Comecei
a trabalhar na Unisinos e em outra Universidade, e depois em mais outra. Fui
escolhendo e resolvi passar o meu tempo na Unisinos, onde fiz o Mestrado e o
Doutorado em História, e onde eu dava aula no curso de Ciências Sociais e no curso
de Pedagogia. Enquanto trabalhava na Universidade, aprofundei meus contatos com
o Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH). Foi quando a questão dos
Direitos Humanos se fez mais presente, tanto em algumas participações em
atividades ligadas à Educação, como em temas de pesquisa, especialmente no
campo dos direitos civis e políticos. Os direitos que Bobbio (1992) chamaria de
direitos de primeira geração. Minha relação com o Movimento se aprofundaria
ainda mais nos anos 1990, com a criação da Rede Brasileira de Educação em
Direitos Humanos (RBEDH), vinculada à Comissão de Justiça e Paz de São Paulo
(CJP/SP), na qual representei o MJDH. Veja, a CJP/SP teve uma importância
decisiva no processo de redemocratização. Foi a atuação da CJP/SP contra a tortura,
a denúncia de prisões ilegais e o Movimento das Mulheres pela Anistia que deram
origem aos movimentos sociais pela redemocratização. A partir de então, a
sociedade civil se reorganizou dando vida às lutas pela Democracia. Foi nesse
período histórico que as relações entre os direitos humanos e a Educação se
tornaram indispensáveis na minha constituição de cidadão e de Professor. O
Movimento de Justiça e Direitos Humanos me forneceu o tema das minhas
pesquisas, especialmente da pesquisa que resultaria na minha tese de Doutorado[4].
Então, um pouco foi isso: as dificuldades do início da vida profissional quando a inserção no mundo do trabalho estava relacionada aos momentos de vida clandestina. Com o período de abertura pude voltar a estudar e, ao me vincular ao MJDH, encontrei não só um tema de estudo e pesquisa, mas, um ponto de inflexão para minha participação cidadã. E, quando houve “a abertura”, passei a trabalhar efetivamente com um emprego fixo, com carteira assinada, e possibilidade de participação cidadã.
Entrevistadores:
Em recente apresentação a uma revista interdisciplinar de direitos humanos, a qual escreveu juntamente com Professor Clodoaldo Meneguello Cardoso (Viola; Cardoso, 2024), é destacado o golpe de Estado de 1964, que completou 60 anos em abril deste ano. Na apresentação, é afirmado que “precisamos ouvir os mortos”. Perguntamos, o que eles teriam e têm a nos dizer, alertar-nos para que possamos garantir a construção de uma sociedade calcada na Democracia, na liberdade e na justiça social? E como isso significaria também uma Cidadania Global?
Professor Solon:
Pois é, essa revista é editada pelo Observatório de Direitos Humanos da Universidade Estadual Paulista (UNESP/Bauru), é uma revista interdisciplinar. Fui convidado pelo seu editor, o Professor Clodoaldo Meneguello, para montarmos um número especial da revista, que trata da questão da memória. Alertados pelas trágicas experiências de dezembro de 2022 e de janeiro de 2023, pensamos em rememorar os 60 anos do golpe militar de 1964. Considerávamos que, a memória da dor da sociedade brasileira, e na sequência de 1964, as dores da sociedade latino-americana, poderiam contribuir para o “Nunca Mais”.
Colegas do Rio Grande do Sul, do Brasil inteiro, um deles morando em Portugal, lidam com a questão da memória. E por que a memória? É porque se a gente não cuidar da memória do passado, não acertar as contas com o passado para poder viver no presente, a gente poderá ficar restrito e se manter submisso a uma política hegemônica, que é a política do esquecimento, que é a política de deixar as coisas no passado. Veja como exemplo, aqui no Sul, como é difícil ouvirmos falar de Jacobina Maurer[5]. Como é difícil encontrarmos referências aos lanceiros negros, como que é quase impossível de ouvir falar das greves operárias de 1917. O quanto é difícil ouvirmos relatos sobre o movimento estudantil do Rio Grande do Sul e a cassação dos professores da UFRGS em 1964. Há uma política triunfante, de esquecimento, na qual se considera que “é preciso esquecer o passado”.
Como argumentam os teóricos da Escola de Frankfurt, quando uma sociedade não faz um acerto de contas com seu passado, não reconstrói a história de suas vítimas, ela corre o risco de repetir seus erros. Inclusive, não está livre de uma nova morte, que significaria o esquecimento de suas vidas. Se nós que estamos vivos não formos capazes de preservar, aprofundar a Democracia, nossos mortos serão mortos outra vez pelas políticas de esquecimento. A tentativa de janeiro de 2023 torna ainda mais urgente e indispensável que sejamos capazes de ouvir o Luiz Eurico, parceiro do movimento estudantil na segunda metade da década de 1960, casado com a Susana. Luiz Eurico, militante da Aliança Nacional Libertadora (ANL), havia sido participante do movimento estudantil secundarista, na mesma geração que eu. Eurico foi assassinado em São Paulo, pelo Departamento de Ordem Política e Social. Uma vez, um tenente-coronel do exército brasileiro disse a Suzana, que procurava o corpo do marido, “que você quer procurando esse safado, que deve estar casado em Buenos Aires”. Suzana, ainda continua querendo saber detalhes da morte do marido. Ela foi das poucas pessoas que soube que o marido estava morto.
Conheci uma senhora, no Recife, que procurava o corpo de Fernando Santa Cruz. Fernando Santa Cruz, também da minha geração de movimento estudantil secundarista, preso e torturado até a morte teve seu corpo queimado, num forno de uma usina de cana de açúcar, no Rio de Janeiro. A mãe dele dizia sempre aos seus outros filhos que estavam vivos, que não queria vender a casa de Olinda porque Fernando conhecera a casa de Olinda e sabia daquele endereço. Ela tinha certeza de que um dia Fernando iria chegar e procurar a casa para que ela pudesse abraçar o filho. Ela não vendia a casa. Os irmãos só puderam vender a casa depois que a mãe morreu, aos 102 anos de idade, ainda a esperar o filho. A vida se tornou uma longa espera para a mãe de Fernando. E assim eu poderia ficar contando causos. Então, “ouvir os mortos” significa conhecer suas histórias, saber dos crimes cometidos pelo Estado nacional no período da ditadura e ter a consciência de que não queremos mais os autoritarismos e seus crimes contra a humanidade. Não queremos mais os crimes cotidianos contra os setores empobrecidos e deixados à margem da sociedade brasileira de agora. Não queremos mais políticas públicas que condecoram e promovem aqueles que, no cumprimento dos deveres do Estado, exacerbam de suas funções.
Veja, ouvir os mortos significa exatamente compreender que não cabe ao Estado exorbitar no uso da força, que o Estado não pode nem prender, nem torturar e nem matar, e nem esconder os corpos. Que uma Democracia pressupõe a liberdade de pensar e exprimir o pensamento, sem que isso signifique que o pensamento seja um universo infinito de mentiras e um universo infinito de inverdades. Significa que a justiça é mais do que o direito da fala. É o direito sagrado de sepultar os mortos.
Ouvir os mortos significa compreender o que aqueles mortos pensavam da vida, por quais razões lutaram que mundo idealizavam para si e para os seus contemporâneos. O que a geração calada, dos anos 1960, 1970 e na primeira metade dos anos 1980, pensava de sonho, como sonhavam. Não era só em ouvir a música dos Beatles, do Chico, da Elis, usar cabelo comprido e saia curta, não. Era as mulheres e os homens assumirem a sua sexualidade e o seu desejo, e entre esses desejos, o desejo de viver em liberdade. E viver “cidadanamente” como eleitores, mas não só como eleitores. E aí, eu acho que estou botando o pé na questão da cidadania.
Então, vamos à questão da cidadania. Uma cidadania global. Uma cidadania que tem, no ocidente, uma expressão originada nos impérios antigos.
Que era a Democracia ateniense? O lugar daqueles nascidos em Atenas. Eram somente os homens que participavam. A Democracia estava restrita aos homens nascidos em Atenas. Cabia, a eles, as decisões a serem tomadas coletivamente na praça pública e decidir as questões que permitiam a vida coletiva da Pólis, daí política. A praça era o lugar das decisões tomadas em público, por votação da maioria. As contradições e os conflitos faziam parte dos processos decisórios produzindo desconfianças sobre o próprio processo político. A soberania pertencia à maioria e a ela cabia a escolha dos governantes. A Democracia ateniense foi antecedida de outras formas de governo. A Monarquia, por exemplo, na qual a soberania pertencia a um só, a Majestade, e a Aristocracia, ou o governo dos donos de terras. A eles cabia a soberania. Tanto na Monarquia quanto no período da Aristocracia a participação da cidadania era restrita ora nas mãos de um, o Soberano, ora nas mãos do grupo. Na Democracia a soberania pertencia aos moradores da pólis que delegavam a soberania aos governantes por ela escolhidos com direito de governar por um tempo determinado. Essa palavra – soberania – é um complemento indispensável da cidadania. Especialmente quando pensamos em uma dimensão global, ou em uma dimensão cosmopolita.
Na Democracia, quem é o cidadão ateniense? Quem é que faz a pólis? Quem é o morador da pólis? O homem que nasceu na pólis. A Democracia de então não era cosmopolita, era a cidadania de um lugar e não incluía a todos. Pertence aos atenienses. Ou a de Roma, e em Roma a cidade não é a pólis, é a cidade, então é o cidadão, o cidadão romano.
Então, o cidadão participa das decisões. Participa das Assembleias feitas nas praças ou em outro lugar público, e ele tem direitos de falar de votar. É na praça pública, onde está o templo, onde está o Olimpo, onde estão os deuses, portanto, o cidadão ateniense fala e vota. No Pantheon Romano, também, estão os deuses, e os nascidos no lugar que falam e votam e são cidadãos ou são os políticos. O político na pólis, o cidadão na cidade romana. Isso funciona, mas não funciona universalmente. As mulheres, mesmo as nascidas na pólis, não participam.
Quando Atenas comandou a federação das cidades gregas contra Tebas, ela não instituiu em Tebas a cidadania e a política, ela impôs a força do domínio grego. Essa é a tendência dos impérios. Eles impõem o seu modus de domínio. Na história antiga foram as tiranias, no Século XX as ditaduras na América Latina. Em qualquer tempo histórico que você estude, poderá encontrar discursos que desconfiam da Democracia e da cidadania. Encontrará, também, manifestações de ameaças decorrentes do ódio que ela provoca. A cidadania, terminado o período Romano, adormece. Adormece talvez seja um bom termo. Ela cede o lugar às distintas aristocracias feudais.
As distinções demonstram as diferenças culturais de cada etnia e de cada região geográfica da Europa. Nem todas influenciadas, de forma decisiva, pela regulação e centralização vindas de Roma. Nesse período, a cidadania está escondida, corre como desejo e como participação nas práticas culturais de cada grupo humano. Quem regula as sociedades são exatamente os códigos de ética que vem da antiguidade ou aqueles que se formam nas relações cotidianas.
Em algum lugar, lá pelo ano 1000, 1200, esse lugar é a Inglaterra. Nela um Rei exerce a soberania, e premido pelas circunstâncias históricas, torna-se um tirano que estabelece uma política de aumento e arrecadação excessiva de impostos. Então, a nobreza se rebela, e impõem um tratado que refaz as políticas do Estado alterando a governabilidade e construindo uma nova forma compartilhada de soberania. Esse contrato limita os poderes do monarca. Nesse momento histórico a cidadania volta a ser um componente da história humana, em plena idade média, se reconstitui o controle do governo pela sociedade. Não podemos ainda pensar em Democracia, mas o controle do governo passa das mãos do monarca para um controle da aristocracia. O que significa que a soberania mudou de mãos. E, portanto, o ponto chave da construção da cidadania.
Enfim, o camponês que lutava ao lado do nobre, poderia manifestar-se e exigir melhores condições de trabalho e melhorar suas condições de viver. Na literatura, podemos encontrar diversos exemplos. Muitas vezes, historiadores recorrem a ela e encontram narrativas preciosas para a compreensão dos processos históricos. Na literatura podemos encontrar movimentos contra a tirania, como no conto popular de Robin Hood, mas, também, pelas peças magníficas de William Shakespeare. Encontro em Rei Lear, vejo em Hamlet, vejo em Otelo, vejo na forma pela qual a cidadania se expressa por uma cultura de um homem genial.
Aí vamos ter que dar um “pulo” de duas épocas, que são muito próximas: uma de formação da cidade e da indústria, e outra que é mudança política realmente. Se trata, então, de um período no qual a burguesia está consolidada economicamente como classe social importante, mas, precisa enfrentar o controle político e jurídico exercido por setores da aristocracia e do Estado absolutista. Um Estado que, sendo nacional, já era sujeito de processos de expansão econômica ávido por expansão territorial e militarmente preparado para o exercício da soberania. As mudanças econômicas e sociais anunciavam novas teorias de organização do Estado e da sociedade. Os iluministas propunham não só uma nova forma de origem da riqueza, mas também, a divisão de poderes do Estado e uma reforma na liturgia jurídica. Os projetos de Democracia reocupavam espaços dos debates políticos. Estava a ser gerado o que viria ser chamado de contemporaneidade. No ocidente a Europa iniciava seu processo de globalização, sem falar em cidadania, um tema ainda restrito aos territórios nacionais de poucos países. O mesmo ocorria, desde o final do século XIV, no Extremo Oriente com as ações da dinastia Ming, suas rotas comerciais e suas viagens internacionais. Uma outra forma de organizar o Estado. O Estado que não tem só a força do Rei que controla apoiado com uma parte da aristocracia. E aí você começa a criar novos ritos, relacionados aos novos setores sociais e que passam a pressionar o rei e a exigir mais do que outra cidadania, uma nova soberania. Então, podemos pensar em soberania. Perguntar quem é o novo soberano e, necessariamente, quem é o novo cidadão. Pensar na urgência de uma outra soberania, na medida em que uma nova classe social amadureceu a ponto de ser capaz de enfrentar a aristocracia corrompida pelo poder absoluto do rei. Nesse período, setores da própria aristocracia irão se aproximar dos novos atores sociais e, juntos com as novas classes, pensarão sobre outra forma de organizar o sistema de poder, promoverão uma nova liturgia jurídica e incluirão novos atores sociais na composição social do Estado. Irão também declarar novos tratados entre eles as primeiras declarações universais dos direitos humanos[6] redefinindo as dimensões de cidadania e da soberania. A soberania não seria mais do Soberano absoluto, mas um direito civil e político da nação.
Então, quando pensamos em cidadania, pensamos que pode pertencer ao tirano, ao ditador. A cidadania é uma construção que nasce da base da sociedade. Daquele que pensa que tem direito de dizer o que pensa e que tem direito de buscar uma vida que lhe garanta a felicidade e justiça. Então, podemos pensar que a ditadura é um fenômeno do Brasil, mas se encontrar um vizinho argentino, uruguaio, chileno, um vizinho da Nicarágua, do Peru, da Bolívia, ou de Santo Domingo, ou, ainda mais longe, de Portugal ou da Espanha, eles que contam que passaram em suas terras as mesmas coisas que passamos aqui podemos concluir que a cidadania e a soberania são ainda muito jovens e frágeis e que precisam de cuidados, zelo e atenção redobradas. Ou mesmo, podemos encontrar um contemporâneo estadunidense que nos conta como viveu a juventude durante a guerra do Vietnã. E, emocionado, narrar como era para as famílias americanas, receber aqueles caixões fechados, vindo do Vietnã, cobertos com a bandeira americana. E acrescenta: “eram muitos, os caixões”.
Entrevistadores:
Dando continuidade à discussão, trazemos um pesquisador argentino para o debate. No livro Fundamentos teóricos e empíricos da Educação para a Cidadania Global Crítica, lançado em agosto de 2023, em atividade organizada pela Cátedra Unesco em Educação para a Cidadania Global e Justiça Socioambiental, o Professor Carlos Alberto Torres trata sobre a Educação para a Cidadania Global a partir das iniciativas da Organização das Nações Unidas (ONU), mas, trata, também, de dimensões conceituais que chama de centrais para a persecução de uma cidadania mundial, a saber: em nível cognitivo, a aquisição de conhecimentos e compreensão crítica acerca do global, do regional, do nacional e do local, entendendo as conexões e interdependências entre os países; em nível socioemocional, o desenvolvimento de um senso de pertencimento ao que ele chama de uma humanidade comum; e, em nível comportamental, na atuação por um mundo mais pacífico e sustentável (Torres, 2023). Para Torres, existem três conceitos, que ele chama de “fortes”, que precisam ser melhor elaborados para superação do dilema de uma cidadania em um mundo global: a Democracia, a Educação e o Multiculturalismo. Ainda, se reporta a outra obra desenvolvida por ele, onde trata sobre os bens comuns globais necessários à cidadania mundial, ao que chama de Planet, Peace and People (Planeta, Paz e Pessoas) (Torres, 2023).
Torres aborda a questão dos Direitos Humanos e da Cidadania Global, ou Cidadania Mundial, como se refere em alguns trechos da obra, mas sem deixar de tensionar o debate. Para ele, “são objetivos muito louváveis, mas eles se confrontam com diversas contradições, como, entre outras, as tensões entre o global e o local em todos os âmbitos humanos” (Torres, 2023, p. 153).
Nesse sentido, Professor Solon, a partir das discussões até aqui, como compreende pensarmos essa cidadania global ou mundial, como Torres chama, em tempos tão polarizados politicamente, onde questões como o “nacionalismo”, dentre outras, são exaltadas, avançando e se enraizando em nossa sociedade? Como pensar, assim, uma soberania mundial?
Professor Solon:
Temos aí uma pergunta muito importante, que é pensar o tempo dessa questão, né? Eu queria lembrar que a humanidade derrotou o nazismo nas várias latitudes e longitudes da Europa e da Ásia. Não há uma derrota só na Normandia. O general que comandava as tropas americanas, queria ir direto ao leste europeu e chegar em Moscou, a capital do leste europeu. Os ingleses perceberam que não era viável e anunciaram para o general americano: que não teriam, militarmente, como ir e vencer o leste europeu. Lembravam dos esforços da guerra e do rigor do inverno. Então quem vence a Guerra, são os esforços militares e políticos dos povos que souberam constituir alianças mesmo que alianças de ocasião. Não retomo esse período, somente para destacar que aí se assinam novos contratos. O que temos é que os vencedores da Guerra definem através dos contratos seus espaços de soberania, e suas formas de cidadania e participação. São vários os tratados e entre eles está o nascimento da ONU. Naquele momento, os acordos entre os vencedores consideram absolutamente indispensável definir espaços geográficos da influência de cada um. Se você pensar, as forças que vão compor a soberania da Iugoslávia, da própria Grécia e, arriscaria dizer, da Itália, também da Espanha, são do tratado de Yalta, que determina a área de influência de quem domina, de quem deixa de dominar. Entre os tratados encontra-se a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que ainda nos influencia e que, talvez, nos influenciará por muito tempo. A ONU, recém organizada, era composta por 56 nações associadas, em que 48 votaram pela aprovação da Declaração no dia 10 de dezembro de 1948. A África do Sul se absteve por ainda estar sob o domínio colonial da Índia, que a ameaçava de retaliação caso assinasse o documento. A Arábia Saudita se absteve por não concordar com o artigo que garantia o direito de conversão religiosa. Os outros seis países – a União Soviética e seus aliados – não aceitavam o fato de que um dos artigos, acertados previamente, acordado no Tratado do Atlântico, não estava incluído na Declaração o artigo que tratava da autodeterminação dos povos. Ou seja, a questão da soberania. Temos abstenções por questões religiosas, étnicas e políticas[7]. A América Latina vota com os Estados Unidos. E se olhar a declaração com muito cuidado, vai observar que toda a parte que diz “cultura política do Estado”, corresponde a compreensão estadunidense ou inglesa do que é o Estado.
De qualquer modo, a Declaração de 1948 atualizava os princípios clássicos dos Direitos Humanos – Liberdade, Igualdade e Fraternidade – ao mesmo tempo em que demonstrava as diferentes sociedades que os Direitos Humanos não se fazem todos de uma só vez e que as Proclamações sejam garantias de sua efetivação. Aí temos um ensaio de cidadania global, um ensaio repleto de contradições fortemente presentes na própria Declaração. Mas, passado um breve período de 20 anos, tornou-se claramente expresso que os anseios de paz precisariam bem mais do que uma Declaração. Mais que isso, as guerras contínuas se tornaram presença cotidiana veiculadas nos meios de comunicação, provocando reações e movimentos que passaram a dar novos sentidos aos direitos humanos clássicos e a exigir novos direitos. Os chamados direitos subjetivos – os direitos à paz e ao meio ambiente -, os direitos de quarta geração. Entre as grandes questões globais, as guerras como a Revolução Argelina, a Guerra da Coréia, as guerras das antigas colônias na África, a Guerra do Vietnã e as ditaduras da América Latina, demonstram que as manifestações contra-hegemônicas não eram simples demonstrações de resistência contra as alternativas hegemônicas aos vencedores da Grande Guerra e mesmo da Guerra Fria. No coração da Europa, e para além dela, formaram-se movimentos pela paz, construíram-se Tribunais Internacionais gestados pela sociedade civil mundial que demonstrariam a urgência da criação de outras formas de globalização, de solidariedades formadas para além da organização internacional do sistema financeiro, industrial e militar. Uma forma de busca de uma cidadania plural, uma cidadania capaz de açambarcar um universo cultural que fosse cosmopolita. Um exemplo significativo desse processo, está no julgamento dos crimes de Guerra do Vietnã feitos pelo primeiro Tribunal Russel, idealizado por intelectuais europeus com apoio de intelectuais de todo o mundo. O mesmo Tribunal, julgaria, posteriormente os crimes cometidos pelas ditaduras latino-americanas[8]. Entre os movimentos, e com essas razões, surgiram na sociedade estadunidenses proclamas de paz e amor, e clamava-se pelo fim guerra do Vietnã. Ainda lá, expandiam movimentos por direitos civis e cresceram as organizações feministas. Na América Latina lutava-se contra as ditaduras e denunciavam-se os crimes do Estados nacionais, eles, os sequestros, a tortura, os assassinatos e o desaparecimento dos corpos dos adversários do regime militar. Na França, sob a possibilidade das primeiras crises econômicas provocadas pelo aumento do petróleo parecia ter o fim da era dourada do capitalismo, e os jovens europeus passavam a “exigir o impossível”.
Quando nos tratados do pós Segunda Guerra Mundial, criaram um Banco Mundial e um FMI (Fundo Monetário Internacional), o que estão propondo? Uma economia global precisaria da liberdade de mercado. A economia vem antes e vindo antes, ela garante a soberania para um setor, para um segmento da sociedade globalizada. Isso é tão intenso porque determina com muita clareza que os países que queriam uma soberania econômica própria, como o Brasil de Getúlio, Jango e Juscelino, como a Argentina de Perón, não têm mais como manter essa proposta de desenvolvimento nacional. É preciso se aliar a um lado dos grupos que dominam o planeta, no tempo da guerra fria. Havia, Estados Unidos de um lado, União Soviética do outro, e, no meio deles, grupos de países que tinham possibilidades efetivas de se consolidarem como emancipados, como independentes, de se consolidarem como soberanos. Os golpes militares das décadas de 1960 e 1970 ocorreram para eliminar essa alternativa de desenvolvimento. Por essas razões, de ordem econômica e política, talvez se torne mais significativo pensarmos mais em uma cidadania cosmopolita – que compreenda e respeite – as múltiplas formas de cultura que a humanidade produziu ao longo do tempo nas diversas latitudes e longitudes do planeta.
Entrevistadores:
Em sua visão, teríamos hoje algum ensaio para a Educação, para a Cidadania Global? Por onde passaria um contrato desses? Alguma possibilidade de contrato que passasse pela sustentabilidade ecológica, ambiental do planeta?
Professor Solon:
Há uns 3 anos, logo depois da pandemia da Covid-19, estive num seminário Internacional dos Direitos Humanos, em João Pessoa. Naquela ocasião, acompanhei duas conferências, uma feita por um por uma Professora italiana e outra feita por um Professor da Espanha, e a discussão era exatamente as ações para pensar a formação de uma Cidadania Cosmopolita. A cosmopolis. Então ficou claro que o mundo discute essa possibilidade. Porque as questões do mundo são questões cosmopolitas, efetivamente. Veja, por exemplo, do mundo que sobrou da Segunda Guerra Mundial e que se construiu dela, era um mundo de duas organizações que se diferenciavam não economicamente. Tanto na União Soviética, quanto nos Estados Unidos, o projeto era de urbanização e industrialização, e nessa medida do absoluto uso dos recursos do planeta. Praticamente, haveria uma única forma de sobrevivência da humanidade que viria do desenvolvimento da indústria, e do consumo das mais distintas formas de produção e das formas de uso de fontes de energia. A cidade formaria o habitat humano com suas exigências e carências. Então, preparou-se o mundo para isso. Considerava-se que o desenvolvimento seria contínuo e sem crises. Essa era a promessa, o sonho que não seria desfeito. No entanto, a crise foi tamanha, que a União Soviética compreendeu tão mais rápido do que o capitalismo, que se desfez, que esvaneceu e ao se diluir, diluiu a guerra fria deixando aos vencedores uma hegemonia que pareceria interminável.
Diante dos cenários atuais nos quais vivemos, as guerras, os extermínios de povos, as queimadas, os desmatamentos, seremos levados a buscar alternativas, como construir cidadanias e soberanias que correspondam às urgências da sobrevivência do planeta e, em decorrência, a própria sobrevivência da humanidade. Essas questões não poderão ter resposta única. Perguntemos às mulheres se as respostas que elas querem são as mesmas dadas pelos homens desde o período histórico em que a humanidade se tornou sedentária. Perguntemos aos africanos de agora, que tentam em todo e qualquer tipo de barco atravessar o Mediterrâneo, se consideram viáveis as alternativas existentes. É a mesma resposta? Pergunte ao povo da Índia que tem bomba nuclear e passa fome, é a mesma resposta? Essas questões, aparentemente simples, demonstram que a constituição de uma cidadania cosmopolita, ou uma cidadania global, necessariamente será plural. Uma questão que o Professor Carlos Alberto Torres, levantava conosco é decisiva. A questão da paz. E, por isso, quando ele propõe a paz, essa proposta é absolutamente válida. A paz, é um componente da cidadania cosmopolita tanto quanto a justiça social, sem a justiça social, e a humanidade sabe desde a Idade Média, a paz se torna inviável para aqueles que não a possuem.
Então, a construção de uma cidadania cosmopolita é urgente. A paz é um elemento dessa cidadania. A preservação ambiental, a vida do planeta, a justiça social são elementos dessa cidadania. Se não respeitarmos as culturas dos lugares, a cultura dos povos, a cidadania será uma cidadania de uma nova forma de colonização. E, por isso, é preciso com urgência pensar na cultura universal e quais os direitos humanos serão capazes de responder.
Entrevistadores:
Professor Solon, nesta questão, gostaríamos de pensar um pouco mais sobre a perspectiva dos Direitos Humanos para uma Cidadania Global.
Em Desenvolvimento como Liberdade, o economista Amartya Sen, Prêmio Nobel e um dos idealizadores do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), nos aponta que o desenvolvimento ocorre a partir da inserção social dos sujeitos, o que se dá a partir de condições de “oportunidades econômicas, liberdades políticas, poderes sociais e por condições habilitadoras como boa saúde, Educação básica e incentivo e aperfeiçoamento de iniciativas” (Sen, 2010, p. 18). De certo modo, tais condições também estão delimitadas na Iniciativa Global Educação em Primeiro em Lugar, da ONU, que tem como prioridades que todas as crianças possam frequentar a Escola, a melhoria da qualidade da Educação e a promoção de uma cidadania global (Torres, 2023). Assim, a Educação é destacada como fator primordial não somente ao desenvolvimento, mas, também, à inserção pessoal/social e, por consequência, ao reconhecimento dos sujeitos enquanto cidadãos. Nessa perspectiva, tanto Amartya Sen (2010), quanto o Professor Carlos Alberto Torres (2023), destacam a Educação como um fator central, determinante.
Nesse sentido, como podemos pensar uma cidadania global para aqueles e aquelas que tiveram seus direitos fundamentais, como a Educação, negados? Para além disso, como podemos pensar uma cidadania global para aqueles e aquelas que sequer se reconhecem enquanto cidadãos/ãs? Seria a Educação em Direitos Humanos um caminho, uma possibilidade, para este reconhecimento cidadão e, por consequência, uma via para a Cidadania Global? Seria o sujeito político, o cidadão e a cidadã?
Professor Solon:
Não sei se consigo responder a tua pergunta. Ela é, de fato, uma pergunta mais para a sala de aula do que para o espaço de uma entrevista. Que direito é negado? Quais são os direitos negados? Às vezes, não se trata de direitos civis e políticos. São negados desde a infância, direitos sociais e econômicos. E se você pegar historicamente a questão racial, aqui no Brasil ou lá na Europa, compreender quem é o ser humano. A recusa da condição humana, ao povo negro escravizado e o que isso produziu como uma história cultural para os povos da África e dos povos aqui da América Latina? E, ainda, nesta questão da nossa formação histórica, a produção de “escravo dos tempos contemporâneos”, tem aspectos distintos do que se chamava “escravo” na antiguidade. O “escravo da antiguidade” era uma pessoa derrotada na guerra. Se você olhar esse século XXI, e olhar, por exemplo, a situação de trabalho análogo à escravidão na área da produção de uva no Rio Grande do Sul, tem argentino/branco e nordestino que também é branco. Se você olhar algumas indústrias de confecção de tecidos no Nordeste, no Centro-Oeste, no Sudeste, brasileiros encontrará trabalho análogo a escravidão. São brancos, às vezes latino-americanos e não são derrotados na guerra. E na escola na qual estudaram não encontraram nenhum conteúdo que ensinasse o que são direitos humanos. Então, observe, tem pessoas a reivindicar que a escola é o lugar de disciplina rigorosa, e, por isso, quer privatizar a gestão. Existem projetos assim, em várias Câmaras de Vereadores no Brasil, nas Assembleias Legislativas também. Em uma e em outra, sabem que são projetos inconstitucionais. O Brasil tem um Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, tem Diretrizes Nacionais para Educação em Direitos Humanos, A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) contempla a Educação em Direitos Humanos. São efetivamente documentos recentes que auxiliam na elaboração de um projeto educativo que a pessoa jovem, a pessoa adulta, a pessoa velha, se saiba ser humano e os direitos que o ser humano tem para garantir a sua condição de humanidade.
Cabe aos educadores pensarem num projeto educativo no qual educadores e estudantes compreendam a dimensão do conhecimento e do quanto o conhecimento pertence a condição material de vida humana como a soberania é a condição material da cidadania global. A palavra geradora ainda é tijolo[9]?
Entrevistadores:
Como poderíamos organizar essa ideia de que os Direitos Humanos seriam o pilar fundador de uma Educação para a Cidadania Global, que, como nos trouxe, não pode abrir mão da pluralidade e desse reconhecimento de cada um? Conforme destacou, que o global não tente colonizar, a partir do soberano, não da soberania, mas do soberano arrancando a soberania dos demais. Porque, na verdade, ao longo da história, parece que isso é o que tem se fortalecido.
Professor Solon:
Sim, a soberania tem que ser definida, não pela dimensão do econômico e da força militar. A soberania, numa ideia de cidadania cosmopolita, é uma soberania da multiplicidade das culturas do mundo. A cultura, como dizia o Carlos Rodrigues Brandão, a cultura como forma de vida. No pensamento de Carlos Rodrigues Brandão (2018a, 2018b), a cidadania cosmopolita é uma cidadania fundada sobre a dimensão cultural dos povos.
Referências
BOBBIO, N. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 1992.
BRANDÃO, C. R. Cultura (Movimentos de Cultura Popular). In: STRECK, D. R.; REDIN, E.; ZITKOSKI, J. (orgs). Dicionário Paulo Freire. 4. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018a, p. 120-121.
BRANDÃO, C. R. Cultura Popular. In: STRECK, D. R.; REDIN, E.; ZITKOSKI, J. (orgs). Dicionário Paulo Freire. 4. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018b, p. 123-127.
FIORI, E. M. Aprender a dizer a palavra. In: Freire, P. Pedagogia do Oprimido. 17ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987 (O mundo hoje, v. 21).
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 17ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987 (O mundo hoje, v. 21).
FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se complementam. 17ª ed. São Paulo: Autores Associados; Cortez, 1987b (Coleção polêmicas do nosso tempo. 4)
SEN, A. Desenvolvimento como Liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
TORRES, C. A. Fundamentos teóricos e empíricos da Educação para a Cidadania Global Crítica. Tradução de Luís Marcos Sander. Caxias do Sul: EDUCS, 2023.
VIOLA, S. E. A.; CARDOSO, C. M. Rememorando 1964. precisamos ouvir nossos mortos? In: Apresentação da Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos (RIDH), v. 12, n. 1, jun. 2024 (22). Disponível em: https://www2.faac.unesp.br/ridh3/index.php/ridh/article/view/290/122. Acesso em 5 de jun. 2025.
Submissão: 31.10.2024.
Aprovação: 07.06.2025.
[1] Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo: daiannyc@unisinos.br.
[2] Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo: mumbach.alexandre@gmail.com.
[3] Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo: rosangelasilvaa@unisinos.br.
[4] “Democracia e Direitos Humanos” é o título da tese defendida pelo Professor Solon Viola, no ano de 2005, para obtenção do título de Doutor em História, na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Sua tese foi publicada em livro: Direitos humanos e democracia no Brasil. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2008, 220 p.
[5] Jacobina Mentz Maurer, líder do Conflito dos Muckers. Mais informações podem ser encontradas em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/1093/710311.pdf
[6] Para além da Declaração Universal dos Direitos do Homem, leia-se a Declaração Universal dos Direitos das Mulheres escrita por Olímpia de Guges. Tal declaração expressa o quanto a cidadania era negada a elas pelos políticos que haviam assumido o controle do Parlamento e a soberania do Estado.
[7] Sobre a votação que aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos leia-se Samuel Moyn; Samuel Moyn Entrevistado por André Rangel Rios, Rio de Janeiro, Editora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, col. Pensamento Contemporâneo, 2013.
[8] Sobre o IIº Tribunal Russel leia-se o texto de Giancarlo Molina Os Legados do Tribunal Russel II e de Lelio Basso no Movimento Pela Anistia. IN – 40 Anos de Anistia no Brasil – Lições de Tempos de Lutas e Resistências. Tosi, Giuseppe, Ferreira, Lucia G, Zenaide, Maria Nazaré, (orgs) Rio de Janeiro, Lumen Juris ed. 2021.
[9] Aqui, o Professor Solon Viola faz uma alusão às palavras geradoras apresentadas por Freire (1987a) para a alfabetização de adultos. “Estas palavras são chamadas geradoras porque, através da combinação de seus elementos básicos, propiciam a formação de outras. Como palavras do universo vocabular do alfabetizando, são significações constituídas ou reconstituídas em comportamentos seus, que configuram situações existenciais ou, dentro delas, se configuram” (Fiori, 1987, p. 11). A palavra geradora forma parte do método de alfabetização que tinha por base aprender a ler a partir da leitura do mundo (Freire, 1987b). Assim, a palavra tijolo poderia ser a escolhida, pois, estaria em diálogo com os/as trabalhadores/as os/as quais, tanto por ela como por tantas outras, significariam sua aprendizagem, sua alfabetização, sua realidade, sua conscientização.