Mídias digitais indígenas no Acampamento Terra Livre: a crise climática na pauta dos movimentos indígenas[1]

 

Maria Perpétua Baptista Domingues[2]

 https://orcid.org/0000-0003-3115-2157

 

 

Resumo

O presente trabalho busca uma análise da luta por direitos indígenas, sobretudo territoriais, por parte da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), destacando a abordagem sobre a crise climática no Acampamento Terra Livre (ATL) dos anos de 2020 até 2024, nas suas edições virtuais e presenciais. Com esse objetivo, foram explorados os acervos digitais do APIB referentes à realização do ATL no período mencionado. Ganham destaque as mídias digitais indígenas e o conceito de Antropoceno. São abordadas articulações possíveis entre as experiências indígenas registradas no ATL e seu caráter educativo e descolonizador, não apenas para o grande público, mas também para o público escolar.

Palavras-chave: Movimentos indígenas. Antropoceno. APIB. ATL. Mídias Digitais Indígenas.

 

Indigenous digital media at the Acampamento Terra Livre (ATL): the climate crisis on the agenda of indigenous movements

 

Abstract

This paper seeks to analyze the struggle for indigenous rights, especially territorial ones, by Articulation of Indigenous Peoples of Brazil (APIB), highlighting the approach to the climate crisis at the Acampamento Terra Livre (ATL) from 2020 to 2024, in its virtual and in-person editions. With this objective, APIB 's digital collections related to ATL in the mentioned period is explored. Indigenous digital media and the concept of Anthropocene are highlighted. Possible connections between indigenous experiences recorded at ATL and its educational and decolonizing character are addressed, not only for the public in general, but also for school audiences.

 

Keywords: Indigenous movements. Anthropocene. APIB. ATL. Indigenous Digital Media.

 

 

Introdução

 

Ao discorrer sobre os movimentos indígenas, Oliveira (2016, p. 275) afirma que o Movimento Indígena é “categoria operativa central no discurso dos indígenas e dos atores e instituições que com eles interagem”. Segundo o autor, a busca de compreensão acerca das estratégias políticas do associativismo indígena deve considerar os processos ocorridos em diferentes contextos e escalas, combinando fatores históricos, culturais, locais e globais, que geram tais estratégias, sempre diversas e heterogêneas.

Munduruku (2012) aborda o surgimento do Movimento Indígena no Brasil, a partir dos anos 1970, como tempos difíceis de um regime de exceção, no qual a política indigenista do governo previa que os povos indígenas deveriam ser integrados pela nação. Assim, renunciariam a suas identidades étnicas, e as terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas seriam disponibilizadas para exploração de suas riquezas pelo próprio Estado ou por interesses particulares. Munduruku (2012, p. 209) destaca: “do ponto de vista dos indígenas, os acontecimentos que os afetavam não tinham repercussão na mídia nacional, tornando-os isolados na luta pelos seus direitos”. O autor também ressalta a fala de Álvaro Tukano a respeito da década de 1980, sobre a importante participação da imprensa na causa indígena. Naquele contexto, foi importante a contribuição da imprensa alternativa, capaz de fazer interlocução entre os indígenas e a sociedade nacional, tendo em vista que a mídia tradicional estava fechada para o movimento indígena e suas lideranças, apenas reproduzindo ideias estereotipadas divulgadas pelo regime militar (Munduruku, 2012).

No século XXI, a apropriação das mídias digitais tornou-se importante instrumento de mobilização política, compondo, assim, um mecanismo de representação, levando seus pleitos ao conhecimento público. Atualmente, o Acampamento Terra Livre (ATL) é a maior mobilização indígena nacional realizada anualmente na capital federal durante o mês de abril. Também é o grande fórum de decisões, deliberações e denúncias de diversos povos indígenas através da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). A fim de divulgar suas ações, a APIB mantém um site, páginas nas redes sociais Facebook, Instagram e X, além de possuir um canal no site de compartilhamento de vídeos YouTube.

No conjunto analisado, no âmbito das quatro últimas edições do Acampamento Terra Livre, duas das quais foram realizadas totalmente de forma virtual devido à pandemia causada pelo coronavírus, podemos observar estratégias políticas para dar visibilidade e fortalecimento as suas reivindicações, sobretudo territoriais, e afirmações identitárias, a partir de suas próprias narrativas. Isso lhes inscreve no desafio de desestabilizar hegemonias, romper preconceitos e estereótipos presentes no senso comum, e por vezes nos currículos escolares.

Nesse aspecto, a etnomídia indígena ultrapassa formas convencionais da linguagem jornalística e procura ser um instrumento pedagógico na afirmação identitária e cultural dos povos indígenas, visibilizando seu protagonismo e dispensando mediadores. Também visa à promoção de um diálogo inter e intraétnico, e da mesma forma, busca um diálogo igualmente pedagógico e formativo com os não indígenas.

Portanto, seria possível pensar nessas iniciativas como atos políticos com potencial descolonizador. Podemos entendê-las também como estratégia pedagógica para desnaturalizar o colonialismo digital (Faustino; Lippold, 2023) e demais práticas colonialistas que silenciaram esses povos, e pensar em possibilidades nas mídias indígenas para que possamos tecer novas narrativas sobre a história e saberes desses povos a partir de suas próprias perspectivas.

A análise de conteúdo, realizada a partir de uma etnografia digital, indica que os indígenas são frontalmente atingidos pela crise climática, fenômeno que não foi causado por suas ações, mas pelos interesses econômicos e políticos sobre seus territórios. Assim, a defesa de seus biomas e sua preservação é a defesa da vida de todos.

Krenak (2020, p. 83) afirma que a ideia de humanidade alienou os seres humanos “desse organismo de que somos parte, a Terra, passando a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo que exista algo que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo que consigo pensar é natureza”. As narrativas do ATL vão ao encontro das formulações de Krenak. Os discursos veiculados vão no sentido de inversão de uma relação de domínio da natureza por uma relação de integração com todos os seres, uma visão holística que entende a interdependência entre seres humanos e não humanos que habitam os diferentes biomas do planeta, indispensável para restabelecer equilíbrio.

A partir dessas falas, buscou-se dialogar com algumas análises sobre o Antropoceno, conceito disputado e que encontra dissensos, mas que potencializa o combate a silenciamentos impostos aos saberes e cosmologias indígenas pela modernidade ocidental, e no sentido de promover novas formas de produção de conhecimento.

Povos indígenas e mídias digitais

 

Em meados da década de 1980, com o arrefecimento gradativo da ditadura militar, em um contexto de clamor social pelo fim da censura imposta aos meios de comunicação e de intensa mobilização dos indígenas de várias regiões do país, povos indígenas no Brasil tiveram acesso às tecnologias audiovisuais, buscando canais de diálogo com a sociedade brasileira em prol de suas reinvindicações. Esse canal de participação social era fundamental no sentido de “viabilizar seu espaço e de controlar a difusão de suas próprias vozes numa mídia que prefere difundir falas sobre os índios, em detrimento da fala dos índios” (Gallois; Carelli, 1998, p. 27).

Segundo Gallois e Carelli (1998), na década de 1990, a mídia brasileira vivia um período de grande transformação e globalização, com a expansão de TVs a cabo e antenas parabólicas que retransmitiam, nas áreas rurais, programações antes reservadas aos centros urbanos. Para os autores, naquela década, vivia-se a expectativa de uma comunicação mais abrangente, na qual todos os segmentos da sociedade pudessem expressar suas contribuições à construção de uma nação pluriétnica. A expectativa dos indígenas não seria diferente. Dessa forma, líderes de associações de diversos povos indígenas assumiram o papel de interlocutores nos diálogos interculturais/intraculturais, com setores indígenas e não-indígenas da sociedade nacional ou internacional, produzindo CDs, vídeos, documentários, e enfim, voltaram-se para novas propostas de comunicação com o grande público e com as comunidades indígenas.

Podemos considerar apropriação das mídias digitais como demanda indígena na atualidade. Tal utilização constitui importante estratégia política para dar visibilidade e fortalecimento às lutas por direitos, sobretudo territoriais, reafirmando identidades étnicas, culturas e modos de viver e ser, a partir de suas próprias narrativas. Sem intermediários, são os próprios indígenas que dão visibilidade às suas reivindicações, levantam denúncias, comemoram conquistas, tratam de assuntos ligados à educação, à saúde indígena, aos sérios problemas ambientais que enfrentam e demais ações. Procuram evidenciar autonomia a partir da quebra do papel de mediadores não indígenas em seus pleitos, e no diálogo intercultural ao qual se propõem, resgatando, assim, um sentido de participação e agência indígena.

Longe de deterem uma posição de controle na circulação informacional, encontram-se em um contexto no qual políticas públicas culturais e de inclusão digital, iniciativas privadas ou de ONGs, movimentos sociais, entre outros atores interagem e variadas formas de apropriação e utilização das mídias digitais ocorrem entre grupos indígenas no Brasil. Podemos acompanhar iniciativas no mundo digital nas quais os próprios indígenas buscam condições de agir e interagir na internet em seu próprio benefício. Os projetos e demandas indígenas por território, intensificados nas últimas décadas do século XX, implicaram a utilização de novos veículos, e assim podemos entender o espaço virtual como estratégico ao ativismo indígena contemporâneo.

Nessa perspectiva, surge o conceito em construção da etnomídia indígena, tipo de comunicação que traz entendimento sobre as culturas, o cotidiano das comunidades e as lutas políticas pelos direitos indígenas. No cenário de disputas de terras e diferentes formas de violência contra esses povos, essa forma de mídia alternativa é necessária para mostrar outro lado, negligenciado pela grande mídia.

A etnomídia indígena é apresentada como veículo alternativo de comunicação, no sentido de tornar possível a construção de uma narrativa representativa e identitária das comunidades indígenas. Esse veículo conta com uma convergência de mídias, em que há o compartilhamento e produção de conteúdos em blogs, redes sociais digitais, como o Facebook e o Instagram, em canais no YouTube e nos aplicativos de mensagens.

Dessa forma, indígenas e não indígenas podem não apenas ter acesso aos conteúdos produzidos, mas também interagir com seus produtores e colaboradores por meio do computador, tablet ou smartphone, este amplamente utilizado. Isso permite que as etnias falem e produzam sobre si e transmitam suas percepções acerca de uma realidade que muitos, fora do meio indígena ou indigenista, não conhecem, tendo em vista a pouca, ou por vezes negativa visibilidade indígena nos meios de comunicação de massa.

Porém, é importante pontuar que o avanço da Internet e das tecnologias a ela acopladas e que trouxeram evidentes transformações na organização produtiva e econômica de forma geral, nos cotidianos e sociabilidades, na redistribuição e uso do tempo livre em todos os segmentos sociais, não pode ser entendido como democracia no espaço digital.

Além da desigualdade no acesso, existem outros aspectos a serem considerados. É importante ressaltar o exemplo da rede social Facebook, que sofreu acusações de manipulação de dados de seus usuários a favor de projetos políticos autoritários, ameaçando processos eleitorais e decisórios democráticos[3]. Portanto, o potencial emancipatório desses meios não pode ser naturalizado em um cenário no qual a esfera pública se fragmenta e tecnologias refinadas são desenvolvidas por empresas, as Big Techs, para orientar e individualizar escolhas no ambiente virtual das redes sociais, cada vez mais polarizado e hostil, refratário ao diálogo e à pluralidade de ideias.

Ao mesmo tempo, grupos historicamente excluídos de direitos e da grande mídia, como no caso dos indígenas, buscam disputar narrativas que lhes sejam favoráveis na rede mundial de computadores, mesmo que de forma bastante assimétrica, como brecha para dar visibilidade as suas demandas e culturas e como expressão de resistência.

Ao abordar o conceito de cultura digital, Silva (2011) não nega as desigualdades no meio das tecnologias digitais e da internet. Todavia, o autor considera não apenas exclusões, mas também inclusões relativas às tecnologias digitais de comunicação e informação, ambas embaralhadas na estrutura mais ampla das desigualdades sociais no nosso país. Para o autor, os monopólios e concentrações de grandes empresas de mídia são elementos presentes no desenvolvimento da inteligência coletiva criada pela internet, mas a ideia de uma cultura digital, que difere da ideia de inclusão digital, permite pensar em lógicas da comunicação horizontalizada e de criatividade coletiva capazes de abrir caminho para novos modelos de articulação social e ação política, a partir do campo conversacional que surge na lógica de comunicação horizontalizada.

Assim, Silva (2011) não engessa as possibilidades emancipatórias desses meios e as disputas que os envolvem. As concepções do autor parecem ir ao encontro dos objetivos dos criadores e colaboradores indígenas, que buscam interconectar cultural e socialmente um número significativo de pessoas, grupos e comunidades indígenas de forma potencializada pela capilaridade de mídias convergentes, como os aplicativos de mensagens e redes sociais, e pela popularização dos aparelhos de telefonia móvel celular, cada vez mais comuns nas aldeias.

Nos contextos indígenas, a dimensão cultural e identitária, a contínua luta por territórios e manutenção de direitos constantemente ameaçados, além do agravamento da crise climática que lhes ameaça e vulnerabiliza, ligam comunidades virtuais que abrangem coletivos étnicos e interétnicos, indígenas em contexto urbano, não indígenas, capazes de estabelecer relações comunitárias e simétricas em rede entre seus usuários ou atores sociais.

Ao abordar os movimentos indígenas e suas formas de associativismo na década de 1980, Oliveira (2016) afirma que a liderança indígena emergiu como categoria unificadora, marcada pela natureza da mensagem e, portanto, as lideranças tornavam-se porta-vozes de denúncias e reivindicações, atuando por meio de entrevistas com autoridades ou entidades de prestígio e fazendo uso dos meios de comunicação. Dessa forma, deram visibilidade a um novo ator político no cenário nacional, “que funcionava como os representantes autorizados das demandas indígenas” (Oliveira, 2016, p. 278). Desde então, perante a opinião pública, indigenistas ou agentes do Estado não são mais os representantes dos indígenas, mas eles próprios, articulados no movimento indígena.

Nessa perspectiva, em 2005, surgiu a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), instância de referência nacional do movimento indígena no país. Ela aglutina organizações indígenas de todas as regiões do Brasil, e tem como propósito articulá-las e promover a mobilização dos povos contra as ameaças e agressões aos seus direitos. A APIB atua nas reivindicações junto ao Estado e à sociedade brasileira, unificando pautas de reivindicações e demandas indígenas.

As análises a seguir concentraram-se principalmente nas narrativas dos participantes das mobilizações nacionais anuais do Acampamento Terra Livre, disponíveis no canal do YouTube da APIB, no seu site e redes sociais a partir do ano de 2020, ano marcado pela pandemia causada pelo coronavírus. 

 

A APIB e o ATL

 

O Acampamento Terra Livre (ATL) é uma grande mobilização indígena nacional realizada anualmente na capital federal durante o mês de abril, marcando o Abril Indígena, ressignificado pelos movimentos indígenas organizados como mês de luta por direitos, em função da data cívica já consagrada em 19 de abril, o antigo Dia do Índio e atual Dia dos Povos Indígenas. O eixo articulador de realidades indígenas diferenciadas é a questão fundiária, da demarcação de terras, principal reivindicação e pauta desse movimento.

O ATL tem se apresentado como a mais importante mobilização indígena ocorrida em contexto brasileiro. O primeiro ATL ocorreu entre os dias 15 e 19 de abril de 2004, na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, passando a se repetir nos anos subsequentes. Naquele ano, cobrava-se a imediata homologação da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, em Roraima, e na mesma perspectiva, buscava-se evitar retrocessos nas conquistas garantidas pela Constituição Federal, constantemente ameaçadas.

Na realização do ATL, ganha destaque a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). No site, a APIB é apresentada como instância de referência nacional do movimento indígena no Brasil, concebida de baixo para cima, pois foi criada pelo movimento indígena no Acampamento Terra Livre de 2005. A APIB tem representação em todos os estados brasileiros através das organizações regionais que a compõe, são elas: Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME); Conselho do Povo Terena; Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (ARPINSUDESTE); Articulação dos Povos Indígenas do Sul (ARPINSUL); Grande Assembléia do povo Guarani (ATY GUASU); Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e Comissão  Guarani Yvyrupa.

Para melhor compreensão da formação do ATL e da APIB, podemos considerar as formulações de Matos (2006). Para a autora, o contexto do início do século XXI redefiniu os rumos do movimento indígena no Brasil. Entre as décadas de 1970 e meados de 1980, o movimento indígena assumiu um caráter pan-indígena, com base em uma organização pluriétnica em defesa de seus direitos dentro do Estado brasileiro, sobretudo na articulação do movimento e na criação da União das Nações Indígenas (UNI), de caráter nacional.

Matos (2006) analisa que, após a Constituição Brasileira de 1988, o movimento indígena iniciou uma nova fase em um novo cenário político. A partir da década de 1990, foram criadas organizações indígenas de naturezas distintas, sejam de caráter nacional, regional, local, associativismos de categorias sociais e econômicas, organizações pluriétnicas ou étnicas. Nesse período, as organizações indígenas tornaram-se menos articuladoras políticas, atuando mais como gestoras e executoras de ações, como as que são ligadas à saúde indígena e à proteção das terras indígenas.

Nas duas últimas décadas, a oposição aos direitos indígenas garantidos na Constituição de 1988, traduzida em Projetos de Emendas Constitucionais, Projetos de Lei e a tese do Marco Temporal, tem tensionado organizações indígenas, levando à retomada da articulação política do movimento em nível nacional, como forma de enfrentamento às sérias ameaças aos direitos indígenas no Congresso Nacional. Na atualidade, os direitos territoriais indígenas colidem frontalmente com as bases desenvolvimentistas apoiadas em alianças com o agronegócio e grandes obras de infraestrutura, defendidas por seus representantes no Congresso Nacional.

Nesse sentido, são exemplares o PL 1610/1996, que dispõe sobre a exploração e o aproveitamento de recursos minerais em terras indígenas (Brasil, 1996), a PEC 215/2000, que propõe a transferência de responsabilidades sobre a demarcação de terras indígenas do Poder Executivo para o Legislativo (Brasil, 2000), e o PL 3729/2004, que dispõe sobre o licenciamento ambiental, admitindo flexibilizações (Brasil, 2004).

Durante o governo de Michel Temer, ganhou força a tese do Marco Temporal, a partir de um parecer emitido pela Advocacia Geral da União (AGU) em 2017. A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) favorável à criação da reserva indígena Raposa-Serra do Sol, em Roraima, no ano de 2009, apoiou-se no fato de que os povos indígenas daquele território já viviam ali à época da Constituição de 1988. Com base nessa decisão específica do STF, a AGU defendeu a abertura de jurisprudência dessa medida, de forma que só seriam consideradas terras indígenas as áreas que estavam sob posse das comunidades na data da promulgação da Constituição.

Mesmo que a medida tomada pela AGU contrarie o entendimento do STF quanto às demarcações de terras indígenas, tendo em vista o que determina o artigo 231 da Constituição Federal, o parecer de 2017 é usado como argumento jurídico para evitar ou retardar a demarcação de novas terras indígenas.

 

Tempos pandêmicos: as edições virtuais do ATL

 

Em 2020, a pandemia provocada pelo coronavírus exigiu o distanciamento social de indígenas e não-indígenas. A princípio, o ATL daquele ano foi adiado. Porém, diante da urgência das reivindicações dos diversos povos indígenas, a APIB optou pela realização do ATL 2020 em formato totalmente virtual, entre os dias 27 e 30 de abril. Os debates ao vivo ocorreram pelas redes sociais da APIB e estão disponíveis em seu canal no YouTube, no seu site e na página da APIB na rede social Facebook.

A edição do ATL de 2020 foi considerada histórica pela APIB, como reinvenção de uma estratégia de resistência e pelo alcance do evento, que teve milhares de visualizações e compartilhamentos diários. Participaram das lives lideranças indígenas de diferentes gerações e de todas as regiões do país, de suas casas e aldeias, além de apoiadores não indígenas, sejam artistas, juristas, acadêmicos, indigenistas, entre outros. A urgência do ATL 2020, a impossibilidade de seu adiamento e sua realização de forma virtual justificam-se por ações do governo daquele ano, que visavam a reduzir direitos indígenas conquistados nas últimas décadas.

A atual ministra de Estado do Ministério dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, em 2020, era coordenadora executiva da APIB. Ela deu início ao ATL destacando a expertise da resistência acumulada em 520 anos. Tendo em vista a necessidade de seguir as orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS) para evitar um novo genocídio entre os povos indígenas, foi necessário mudar a estratégia do ATL e demarcar as telas, afirma a coordenadora (APIB, 2020a). Sônia Guajajara também ressaltou que usar o celular não diminui identidades indígenas, fazendo-se necessário usar esse tipo de tecnologia para realizar denúncias, marcar posicionamento e, assim, unificar lutas coletivas para enfrentar os desafios daquele ano. Além das lives das mesas de discussão, ocorreram transmissões de apresentações artísticas, mostra de filmes, rituais e cantos tradicionais, compondo o ATL 2020.

 

Figura 1 - Abertura: ATL em redes

A cada novo ataque uma nova estratégia de LUTA (APIB, 2020a).

 

Nas falas da coordenação da APIB no ATL 2020, emergem as novas e velhas ameaças. Nessas falas, o governo de Bolsonaro e suas declarações, desde a campanha presidencial de 2018, sobre não demarcar terras indígenas, são abordados como marco no agravamento das ações contrárias aos direitos indígenas, sem precedentes desde o fim da Ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985). O coordenador executivo da APIB, Dinaman Tuxá, lembra que a epidemia da COVID-19 é uma experiência nova para as novas gerações, mas historicamente não é novidade para os povos indígenas, que muitas vezes já foram impactados por epidemias. A situação torna-se mais grave na medida em que garimpeiros e madeireiros, vetores de contaminação, invadem terras indígenas (APIB, 2020a).

No ATL de 2020, a crise climática é abordada como desafio do presente indígena, marcado por ameaças de retrocessos, levando essas populações à grande vulnerabilidade, agravada diante das ações para retirada de direitos e pela premente ameaça da COVID-19, trazendo à tona outras questões. Nas falas, a ameaça aos povos indígenas no Brasil não fica restrita a essas populações, atinge frontalmente a agenda ambiental. A abrangência da questão ambiental e sua extensão à humanidade fica registrada no documento final do ATL 2020:

 

Todos esses atos ilícitos e inconstitucionais constituem um projeto de morte para os nossos povos. Eles implicam na destruição das nossas matas, dos nossos rios, da biodiversidade, das nossas fontes de vida, enfim, da Natureza, da Mãe Terra; patrimônio preservado há milhares de anos pelos nossos povos e que até hoje contribui estrategicamente para a preservação do equilíbrio ecológico e climático e do bem-estar da humanidade, prestando importantes serviços ambientais ao planeta (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, 2020c).

 

Portanto, a dimensão climática coloca indígenas e não indígenas em interseção. O papel estratégico dos povos indígenas na preservação e equilíbrio ecológico e climático, a partir de modos de vida e cosmologias diferenciadas, nos quais a fauna, a flora e o território, fontes de vida, conforme a afirmação do documento, também são fatores estruturantes de identidades e culturas reforçados nos debates do ATL 2020.

Nessa abordagem, a destruição de biomas ameaça a continuidade da experiência humana no planeta. A pandemia de COVID-19 também é tratada como parte de um desequilíbrio, como desrespeito à natureza. Se antes a defesa dos povos indígenas parecia uma coisa distante, apenas uma questão de direitos humanos, o ATL de 2020 busca evidenciar que proteger os povos indígenas é proteger o mundo todo. Esses povos são os mestres na relação saudável com a natureza, como afirma a representante da ONG Amazon Watch, Ana Paula Vargas. Essa fala é ratificada por Sônia Guajajara, que completa: “a sociedade precisa entender o papel dos povos indígenas no combate às mudanças climáticas, para garantir a água, o clima, a alimentação mundial” (APIB, 2020b).

Nas falas dos líderes indígenas e, por consequência, no documento final do ATL 2020, o governo Bolsonaro foi abordado como uma irrupção, uma ruptura a ser combatida, ameaça aos processos de territorialização, acenando para um sentido oposto aos seus modos diferenciados de estar e se relacionar no e com o mundo. O documento final do ATL 2020 denuncia esse governo como “subserviente aos interesses econômicos nacionais e ao capital internacional” (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, 2020), restringindo direitos territoriais e incentivando práticas ilegais sobre terras indígenas, como o garimpo, a exploração de madeira, a pecuária, as práticas agrícolas monocultoras, a grande mineração, entre outras atividades. Segundo o documento, tais práticas constituem uma “clara tentativa de transformar as terras públicas em mercadoria” (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, 2020). O incremento da prática do garimpo e da grande mineração em terras indígenas pode ser explicado pelas demandas do mercado financeiro internacional, tendo em vista ser esse metal valorizado em momentos de crise, por sua relativa estabilidade nesse mesmo mercado.

Latour (2014) chama a atenção para o negacionismo climático, marcado por um debate ilegítimo sobre a ciência do clima e por irracionalidades, através da oposição ciência versus política, como se a política, como campo distinto da ciência, contaminasse ideologicamente a ciência. Dessa forma, o lobby político negacionista, atrelado aos interesses econômicos, atua discursivamente para que o grande público se convença dessa distinção e possível contaminação, mantendo um dissenso artificial, na contramão da ciência, engessando ações. Romper com a oposição entre política e ciência, conceitos permanentemente abertos à dúvida e à revisão, seria uma opção racional para conduzir o debate climatológico, ciência com política, afirma o autor. Ao politizar o debate climático, os indígenas no ATL rompem com a oposição a qual o autor se refere, acrescentando ao debate seus saberes e ações no sentido de preservar o equilíbrio climático.

O Acampamento Terra Livre de 2021 ocorreu entre os dias 5 e 30 de abril, e teve uma segunda edição virtual, devido ao prolongamento do contexto da pandemia da COVID-19, especialmente difícil para os povos indígenas. A APIB contabilizou a morte de 1.026 indígenas até o início do ATL, causadas pela contaminação com o coronavírus. Mulheres do povo Guarani realizaram o ritual de abertura e, em seguida, Sônia Guajajara falou dos ataques e ameaças aos territórios indígenas no último ano, devido à ganância e à cobiça do poder político e econômico. Também relatou as dificuldades e mortes de indígenas contaminados pela COVID-19 e a necessidade de lutar pelos territórios, ambiente que garante seus modos de vida.

As mudanças climáticas foram abordadas em uma mesa específica. Nessa mesa, o coordenador executivo da APIB no ano de 2021, Kretã Kaingang, afirmou que o não indígena não entende a importância de um bioma para os povos originários que lá vivem. Para esses povos, cada ser que vive no bioma não é diferente e um tem que respeitar o outro. Sobre o bioma Mata Atlântica, ele destaca a araucária como símbolo sagrado para o povo Kaingang, responsável pelo cultivo desse vegetal em tempos ancestrais, erguendo florestas. Ele vincula a identidade do seu povo ao território: “o território já foi demarcado pelos nossos ancestrais” (APIBOficial, 2021a). Portanto, destruir um bioma é destruir a identidade de um povo. Para o líder indígena, defender a Mata Atlântica é defender a água e outros recursos que atingem diretamente a sobrevivência de todos, não apenas os indígenas, e por isso todos deveriam se unir: “vai chegar o momento que vai faltar água para todo mundo” (APIBOficial, 2021a).

Os debates sobre a crise climática das edições virtuais do ATL, como no exemplo da fala acima relatada, aproximam-nos de algumas análises acerca do Antropoceno. Chakrabarty (2013) aborda a crise planetária da mudança climática ou do aquecimento global a partir desse conceito, termo que se refere a uma nova era geológica, na qual os seres humanos se tornaram uma força não apenas biológica, mas geológica, em escala grande o suficiente para causar impacto no planeta.

Turin (2022) aponta algumas denominações que circulam para nomear esse evento/processo: antropoceno, capitaloceno, plantionceno, intrusão de Gaia, chthuluceno, entre outras. O autor ressalta que cada uma delas “carrega posições políticas, pressupostos epistemológicos e implicações éticas diferentes, cruzando agentes e instituições as mais variadas” (Turin, 2022, p. 144) e, portanto, não é um debate neutro.

Latour (2014), ao utilizar o conceito de Antropoceno, acena para algumas armadilhas, ao articulá-lo em uma perspectiva reducionista dos humanos. Para o autor, esse conceito torna-se útil nas análises que não admitam a separação entre Natureza e Humanidade. Tal separação, a seu ver, tem paralisado tanto a ciência quanto a política, transmitindo apenas mais do mesmo. Logo, a potência do conceito estaria no rompimento dessa dicotomia, contribuindo para o fim do que Whitehead (1920 apud Latour, 2014) chamou de bifurcação da natureza. O Antropoceno, conceito incerto para o autor, seria uma alternativa para sair da noção de modernização, e permitir que “o domínio do ‘humano’ – seja reconfigurado como sendo a terra dos Terráqueos ou dos Terranos” (Latour, 2014, p.11).


 

De volta à presencialidade: o decreto de emergência climática

 

Após dois anos de realização virtual, em razão da pandemia da COVID-19, as ações presenciais do ATL retornaram em 2022, na Esplanada dos Ministérios, na capital federal, entre os dias 4 e 14 de abril, com o tema Retomando o Brasil: Demarcar Territórios e Aldear a Política (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, 2022a).

No ano em que o ATL completou 18 anos, foi lançada a revista digital Acampamento Terra Livre 2022 (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, 2022b), iniciativa de resguardo da memória do movimento iniciado em 2004. Na publicação, os relatos dos líderes, em 2022, são de combate às ações de parte do Congresso Nacional para flexibilizar o garimpo, a mineração e a indústria madeireira em Terras Indígenas. Dessa forma, protegem não apenas seus direitos, mas toda a biodiversidade.

 

Figura 2 - Indígenas de todo o país marcham em defesa da demarcação dos territórios, em Brasília

Povos Indígenas unidos, movimento e luta fortalecidos (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, 2022b).

 

O documento final do Acampamento Terra Livre 2022 elenca cinco eixos de ações propostas para o que denominaram reconstrução do Brasil (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, 2022c), tendo em vista a proximidade das eleições previstas para aquele ano. O eixo cinco trata da agenda ambiental[4]. Esse eixo apresenta cinco propostas: medidas legislativas e administrativas para rastrear produtos para garantir que eles não sejam oriundos de conflitos territoriais, explorações ilegais de Terras indígenas ou de áreas ilegalmente degradadas; retomar os compromissos assumidos pelo Brasil no Acordo de Paris e em outros acordos internacionais do clima e meio ambiente; reestruturar o ICMBio e o IBAMA para garantir a defesa dos biomas brasileiros; reconhecer a contribuição dos Povos Indígenas, Quilombolas e Comunidades Tradicionais na preservação da biodiversidade brasileira; e retomar as políticas de preservação de nossas fontes de água doce, reconhecendo o papel dos Povos Indígenas na gestão de grande parte de nossos recursos hídricos (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, 2022c). Os dois últimos itens corroboram o papel dos povos indígenas e tradicionais como guardiões da biodiversidade brasileira.

Em 2023, o ATL ocorreu na capital federal, entre os dias 24 e 28 de abril, sob o lema Sem demarcação não há democracia (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, 2023a). Em carta destinada ao presidente Lula, reconhecem alguns avanços do novo governo, como a criação do Ministério dos Povos Indígenas, comandado por Sônia Guajajara, assim como a nomeação de Joenia Wapichana para a direção da FUNAI, e de Weibe Tapeba para a SESAI. Porém, outras preocupações persistem, sobretudo com relação às disputas judiciais referentes ao Marco Temporal. Os representantes indígenas do ATL 2023 afirmaram que não existe solução para a crise climática sem terras e povos indígenas. A diversidade de povos indígenas que vivem nos biomas da Mata Atlântica, no Cerrado, na Amazônia, nos Pampas, na Caatinga e no Pantanal lutam por sua preservação, condição para manterem seus modos de viver e estar no mundo. Portanto, “cada terra demarcada é um fôlego para o planeta” (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, 2023a). Também afirmaram que, apesar de não serem os responsáveis pela crise climática e serem eles os protetores e defensores do meio ambiente, pagam um alto preço por essa crise, com suas vidas em risco. Por esse motivo, decretaram a emergência climática no documento intitulado Carta aberta do Acampamento Terra Livre 2023. Vejamos um trecho do decreto:

 

Continuamos a ser vítimas de políticas discriminatórias, preconceituosas e racistas, pioradas gravemente nos últimos seis anos pelo descaso governamental e o incentivo às invasões protagonizadas por diversas organizações criminosas cujas práticas só pioram as mudanças climáticas. […] Para que isso acabe e para que nós possamos seguir zelando pelo bem viver dos nossos povos e da humanidade inteira, contribuindo com o equilíbrio climático, decretamos à viva voz a Emergência Climática (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, 2023b).

 

O debate da emergência climática destacado no documento vai ao encontro das formulações de Turin (2023). O autor ressalta que a discussão sobre a degradação das condições ambientais não é recente, mas nas últimas décadas, ganhou uma nova intensidade, marcada pelas dimensões da urgência e da catástrofe, afetando a capacidade humana de imaginação de futuros e convergindo para um cenário cada vez mais distópico, para um “mundo sem nós” (Turin, 2022, p. 142). Dessa forma, a eminência de uma catástrofe cósmica, capaz de produzir uma ruptura radical com aquilo que preexistia, demanda conhecimentos que extrapolem a lógica moderna ocidental universalista, englobando conhecimentos e práticas das sociedades indígenas que já vivenciaram experiências de fim de mundo (Kopenawa; Albert, 2015) resultantes da violência do colonialismo, mas que resistiram e ainda resistem. Por isso, uma ideia disruptiva de ‘experiência sem precedentes’, provocada pela crise climática, traz à tona a invisibilidade de experiências históricas que “dizem respeito mais a certos grupos do que a outros” (Turin, 2022, p. 150).

No ano seguinte, o vigésimo Acampamento Terra Livre foi realizado entre os dias 22 e 26 de abril de 2024. O tema da marcha, que reuniu aproximadamente nove mil pessoas, segundo dados da APIB, foi Nosso marco é ancestral, sempre estivemos aqui (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, 2024), demonstrando a persistência da ameaça do Marco Temporal, bastante discutido no ATL 2024. Esse tema sinaliza a continuidade das dimensões sociais e econômicas extremamente desfavoráveis aos indígenas, resultado de formas de colonização e de exploração.

A violência crescente contra os indígenas também ganhou destaque no ATL 2024, abordando, por exemplo, o assassinato de Nega Pataxó, na Bahia, e de outras lideranças indígenas, além de conflitos em territórios localizados em sete estados (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, 2024). O extermínio físico nos remete a outro tipo de violência, o epistemicídio.

Seixlack (2023) investe no conceito de Cosmo-história, tendo em vista o esgotamento dos modelos clássicos de imaginação política do Ocidente configurados no Antropoceno e como forma de romper silenciamentos impostos pela modernidade ocidental. Dessa forma, a Cosmo-história teria o potencial de incorporar princípios epistemológicos não antropocêntricos a sua prática metodológica, como uma teoria simétrica da história, reconhecendo “uma pluralidade irredutível de experiências de historicidade enquanto parte ativa da produção do conhecimento” (Seixlack, 2023, p. 725).

Considerando as previsões do xamã Davi Kopenawa Yanomami, diante da possibilidade da não existência de um mundo em devir, a autora defende “a urgência de reescrevermos os termos do contrato com este planeta” (Seixlack, 2023, p. 727). Para tal, torna-se necessário lançar luz sobre o pluralismo ontológico que orienta os processos de produção do coletivo e nas interações que unem agentes humanos e não humanos. Para a autora, o Antropoceno traz também um sentido cultural, envolvendo questões políticas, ontológicas, epistemológicas e civilizacionais. Deixa visível a devastação ontológica e os epistemicídios empreendidos por uma modernidade que sufoca a diferença, como impacto da colonialidade na produção do conhecimento. É mister reconhecer o potencial das muitas narrativas plurais e formas de agenciamentos indígenas que coexistem no presente. Nesse sentido, Cusicanqui (2021) propõe uma prática descolonizadora, criticando o descompasso entre a reflexão intelectual e a dimensão prática de ação política, sugerindo a desverticalização do trabalho intelectual. Os movimentos de resistência e mobilizações indígenas no presente, como os que aqui foram relatados, ganham significado na prática de ação política com potencial emancipador.

 

Conclusão

 

Munduruku (2012) destaca, em sua obra, o caráter educativo do movimento indígena brasileiro, título de seu livro. O autor aborda a trajetória do Movimento Indígena entre as décadas de 1970 e 1990, salientando as repercussões que o conjunto de mobilizações desse período provocou na vida brasileira, na juventude e povos indígenas. Foi esse movimento, ou movimentos, que fizeram espraiar uma nova visão de participação indígena na história brasileira. Nas palavras do autor, “a atuação do movimento social obrigou a história escrita até então a mudar de rumo e o Brasil a acolher – ainda que compulsoriamente – seus primeiros habitantes” (Munduruku, 2012, p. 211).

O autor considera como contribuição do Movimento Indígena ter revelado à sociedade brasileira a existência da diversidade cultural e linguística desses povos, obrigando a política oficial a reconhecer as diferentes experiências coletivas, na contramão de uma concepção de unidade nacional. Eis de onde derivam múltiplas conquistas, como o artigo 231 da Constituição Federal (Brasil, 1988) e a Lei 11.645/2008, que introduz mudanças nas propostas curriculares nas últimas décadas referentes às questões étnico-raciais, incluindo a história e cultura indígena nos currículos do ensino básico (Brasil, 2008).

Sobre esse tema e sua especificidade escolar, podemos nos remeter aos debates sobre o lugar de fronteira do ensino de História, conforme a abordagem de Monteiro e Penna (2011). Lugar de articulação constante entre as contribuições teóricas e os debates estabelecidos pelos campos da História e da Educação. O lugar de fronteira também é um espaço marcado simultaneamente por encontros e diálogos, mas também por diferenças, distanciamentos e tensões, onde estariam em disputa questões de ordem epistemológicas, culturais e políticas (Monteiro; Penna, 2011).

A docência também é entendida como um lugar por Monteiro (2019), lugar de docência, da ordem da definição de posicionamentos e regras, estabelecendo relações de coexistência, coerção e estabilidade. Porém, nesse lugar há um espaço de docência, da ordem do movimento e da mudança, no qual se estabelecem possibilidades de produção/modificação de sentidos em enunciados que articulam fatos, sujeitos, tempos, poderes em narrativas que induzem sentidos sobre si, sobre os outros e sobre o mundo (Monteiro, 2019). As lutas identitárias em disputa nos currículos escolares, marcados por uma visão eurocentrada e colonizada, não se beneficiariam de uma escuta ativa e sensível dos movimentos indígenas da atualidade?

As mídias indígenas foram destacadas neste texto, como demanda indígena atual. A revista digital comemorativa dos vinte anos do ATL (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, 2024), discorreu sobre o debate Vozes Ancestrais, Conexões Contemporâneas: a Comunicação Indígena, ocorrido no último dia do evento. A mesa abordou a evolução e a importância da comunicação indígena como ferramenta de resistência e expressão cultural. Nesse debate, os participantes compartilharam experiências e enfatizaram que a comunicação indígena vai além do digital, estaria enraizada na ancestralidade e na espiritualidade. Identificaram um crescimento dos comunicadores indígenas, especialmente após a pandemia, além da criação de redes de comunicação com jovens comunicadores, o que ilustra a transmissão intergeracional da luta indígena. O texto também afirma a importância da comunicação indígena para contar suas próprias histórias, denunciar violências e fortalecer a identidade cultural, mostrando a diversidade da comunicação indígena, que abrange mídias digitais e formas tradicionais e espirituais, constituindo-se, portanto, em forte instrumento de luta política, sobretudo por direitos territoriais garantidos pela Constituição brasileira.

Nas falas do ATL, a luta política pelo território indígena ganha magnitude diante do que está em jogo, ou seja, a manutenção de formas de vida indígenas e não indígenas, humanas e não humanas. Proteger o território é proteger Gaia, a Mãe Terra, conforme o registro do documento final do ATL 2020, e tudo que nela vive e é fonte de vida.

Latour (2014, p. 18) afirma que “a política ganha gravidade quando tem um território a defender”, tendo como referência o filme de Alfonso Cuarón, Gravidade, de 2013. Uma esperança para que haja condução a uma sincronização entre o tempo do planeta e o tempo da política. Dialogando com esse autor, Turin (2019, p. 14) afirma que, diante da fragmentação do presente, “um dos elementos mais fortes que nos obrigam a nos colocarmos em um mesmo tempo é, sem dúvida, a dimensão climática. Diante do tempo catastrófico da natureza, todos nos tornamos contemporâneos”.

Nas edições virtuais e presenciais do ATL analisadas, não houve discussão se atualmente vivemos no Holoceno ou no Antropoceno; povos indígenas têm sua própria temporalidade e cosmogonias, o que não lhes livra de sentirem de forma bastante agressiva os efeitos do CO2 e das políticas nacionais e globais. As discussões das últimas edições do ATL gravitaram em torno da defesa do território ameaçado por uma destruição sem precedentes e para todos, em função de interesses econômicos ratificados por discursos e ações radicalizadas nos últimos anos.

O conceito de Antropoceno não é consensual, mas se propõe multidisciplinar, envolvendo as ciências naturais e sociais. Certas análises sobre esse conceito, com as quais se buscou dialogar neste texto, procuram romper bifurcações sobre humanos e não humanos, ou seja, com a lógica universalista moderna ocidental. É nessa perspectiva que os movimentos indígenas podem potencialmente continuar nos ensinando, é com este propósito que buscam canais de diálogo no meio digital. Os saberes e modos de vida dos povos indígenas têm muito a oferecer, não somente em seus aspectos pedagógicos, mas para que se estabeleçam novas políticas para a Terra.


 

Referências

 

ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL (APIB). Abertura: ATL em redes: A cada novo ataque uma nova estratégia de LUTA [...]. Brasília, 27 de abr. 2020a. Facebook: apiboficial. Disponível em: https://www.facebook.com/apiboficial/videos/226979435235495/ ?ref=embed_video. Acesso em: 21 nov. 2024.

 

ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL (APIB). Mensagens de apoiadores aos indígenas do Brasil. Brasília, 27 de abr. 2020b. Facebook: apiboficial. Disponível em: https://www.facebook.com/apiboficial/videos/318150129149192/?ref=embed_video. Acesso em: 21 nov. 2024.

 

ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL (APIB). Acampamento Terra Livre 2020: documento final. APIB Oficial, 2020c. Disponível em: https://apiboficial.org/2020/05/01/ acampamento-terra-livre-2020-documento-final/. Acesso em: 17 abr. 2025.

 

ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL. ATL 2022. APIB, 2022a. Disponível em: https://apiboficial.org/atl2022/ . Acesso em: 18 abr. 2025.

 

ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL (APIB). Revista Acampamento Terra Livre 2022. Brasília, 2022b. Disponível em: https://apiboficial.org/files/2022/06/ATL2022_REVISTA_v3.2.pdf. Acesso em: 17 abr. 2025.

 

ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL (APIB). ATL 2022: Povos indígenas unidos, movimento e luta fortalecidos. APIB, 14 abr. 2022c. Disponível em: https://apiboficial.org/2022/04/14/atl-2022-povos-indigenas-unidos-movimento-e-luta-fortalecidos/. Acesso em: 17 abr. 2025.

 

ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL (APIB). Sem demarcação não há democracia. Apib, 28 abr. 2023a. Disponível em: https://apiboficial.org/2023/04/28/sem-demarcacao-nao-ha-democracia/. Acesso em: 17 abr. 2025.

 

ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL (APIB). Carta aberta do Acampamento Terra Livre 2023: Povos Indígenas decretam emergência climática. Brasília: APIB, 2023b. Disponível em: https://apiboficial.org/files/2023/04/Carta-Povos-Indi%CC%81genas-decretam-Emergencia-Clima%CC%81tica-.docx.pdf. Acesso em: 17 abr. 2025.

 

ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL (APIB). ATL 2024: Revista da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Brasília: Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, 2024. Disponível em: https://apiboficial.org/files/2024/08/ATL2024_Revista_APIBoficial.pdf. Acesso em: 17 abr. 2025.

 

APIBOFICIAL. Mesa Mudanças climáticas. YouTube, 9 de abr. 2021a. 1 vídeo (3h16min50s). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Q9isnpmVASA&t=5630s. Acesso em: 21 nov. 2024.

 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 21 nov. 2024.

 

BRASIL. Câmara dos Deputados. PL 1610/1996. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=16969.  Acesso em: 17 abr. 2025.

 

BRASIL. Câmara dos Deputados. PEC 215/2000. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=14562.  Acesso em: 17 abr. 2025.

 

BRASIL. Câmara dos Deputados. PL 3.729/2004. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=635365&filename=Tramitacao-PL%203729/2004.  Acesso em: 17 abr. 2025.

 

BRASIL. Lei Nº 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm. Acesso em: 21 nov. 2024.

 

CHAKRABARTY, D. O clima da história: quatro teses. Sopro, n. 91, p. 3-22, jul. 2013.

 

CUSICANQUI, S. R. Ch’ixinakax utxiwa: uma reflexão sobre práticas e discursos descolonizadores. Tradução: Ana Luiza Braga e Lior Zisman Zalis. São Paulo: N-1 Edições, 2021.

 

DOMINGUES, M. P. B. Entre pretéritos e demandas do presente: narrativas indígenas na Web. 2020. 300f. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.

 

G1. Entenda o escândalo de uso político de dados que derrubou valor do Facebook e o colocou na mira de autoridades. 2018. [BBC]. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/entenda-o-escandalo-de-uso-politico-de-dados-que-derrubou-valor-do-facebook-e-o-colocou-na-mira-de-autoridades.ghtml. Acesso em: 19 out. 2024.

 

FAUSTINO, D.; LIPPOLD, W. Colonialismo digital: por uma crítica hacker-fanoniana. São Paulo: Boitempo Editorial, 2023.

 

GALLOIS, D. Tilkin; CARELLI, V. “Índios eletrônicos”: a rede indígena de comunicação. Sexta Feira: Antropologia, Artes e Humanidades, São Paulo, v. 2, p. 27-31, 1998. Disponível em: https://usp.br/revistasexta/files/n2-web_1.pdf. Acesso em: 25 nov. 2024.

 

KOPENAWA, D.; ALBERT, B. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

 

KRENAK, A. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

 

LATOUR, B. Para distinguir amigos e inimigos no tempo do Antropoceno. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 57, n. 1, p. 11-31, 2014. DOI: https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2014.87702

 

MATOS, M. H. O. Rumos do movimento indígena no Brasil contemporâneo: experiências exemplares no Vale do Javari. 2006. 259f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2006.

 

MONTEIRO, A. M. Currículo e docência: uma trajetória de pesquisas em ensino de História. Conferência ministrada para a Promoção Funcional à Classe de Professor Titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 28 jun. 2019.

 

MONTEIRO, A. M. PENNA, F. A. Ensino de História: saberes em lugar de fronteira. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 36, n. 1, p. 191-211, jan./ abr. 2011.

 

MUNDURUKU, D. O caráter educativo do movimento indígena brasileiro (1970-1990). São Paulo: Paulinas, 2012.

 

OLIVEIRA, J. P. de. Uma etnologia dos “índios misturados”? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais. Mana. Rio de Janeiro, n. 4, p. 47-77, 1998.

 

OLIVEIRA, J. P. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016.

 

SEIXLACK, A. G. C. Um fazer histórico xamânico: o potencial cosmo-histórico de reconectar territórios no Antropoceno. TOPOI, Rio de Janeiro, v. 24, p. 725-746, 2023. DOI: https://doi.org/10.1590/2237-101X02405405

 

SILVA, F. A. B. da. Cultura Viva e o Digital. In: BARBOSA, F.; CALABRE, L. (org.). Pontos de cultura: olhares sobre o Programa Cultura Viva. Brasília: Ipea, 2011. p. 245.

 

TURIN, R. Tempos precários: historicidade, aceleração e semântica neoliberal. Dansk: Zazie Edições, 2019.

 

TURIN, R. A “catástrofe cósmica” do presente: alguns desafios do antropoceno para a consciência histórica contemporânea. In: MÜLLER, A.; IEGELSKI, F. (Org.). História do tempo presente: mutações e reflexões. 1. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2022. v. 1, p. 141-166.

 

TURIN, R. Antropoceno e futuros presentes: entre regime climático e regimes de historicidade potenciais. TOPOI, Rio de Janeiro, v. 24, p. 703-724, 2023. DOI: https://doi.org/10.1590/2237-101X02405404

 

 

Submissão: 28.11.2024.

Aprovação: 05.05.2025.

 



[1] Este texto é parcialmente oriundo de tese (Domingues, 2020).

[2] Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: mpbdom68@gmail.com.

[3] Em 2018, os jornais The New York Times e The Guardian denunciaram a falta de transparência na proteção de dados dos usuários da rede social Facebook, que teria cedido informações de mais de 50 milhões de pessoas, sem seu prévio consentimento, à empresa americana Cambridge Analytica que utilizou esses dados nas campanhas de Donald Trump, eleito presidente dos EUA em 2016, e na saída do Reino Unido da União Europeia, usando do expediente de notícias falsas e informações distorcidas para interferir nas escolhas dos eleitores. Sobre o tema, ver a reportagem do site Globo.com. (G1, 2018).

[4] Os cinco eixos são: eixo 1 - direitos territoriais indígenas – demarcação e proteção aos territórios indígenas já!; eixo 2 – retomada dos espaços de participação e controle social indígenas; eixo 3 – reconstrução de políticas e instituições indigenistas; eixo 4 – interrupção da agenda anti-indígena no congresso federal; e eixo 5 – agenda ambiental.