O direito à educação e a cidadania global: encontros e desencontros com os princípios do novo Plano Nacional de Educação
Andréa Wahlbrink Padilha da Silva[1]
https://orcid.org/0000-0002-4105-1301
Nilda Stecanela[2]
https://orcid.org/0000-0001-9946-0848
Resumo
O presente texto resulta das reflexões decorrentes da programação da Semana de Ação Mundial protagonizada no Brasil em 2024, intitulada “PNE na Boca do Povo: pelo direito a uma educação com justiça e transformação socioambiental”. Objetiva-se buscar indícios da articulação direta ou indireta entre o direito à educação e o conceito de cidadania global nos quatro documentos que constituem o corpus de análise. A concepção teórico-metodológica fundamenta-se na análise documental e na revisão bibliográfica. Verificou-se que a preocupação com o exercício da cidadania aparece articulada às questões de justiça social e socioambiental. Observa-se ainda a presença de uma crítica às proposições dos organismos multilaterais ao mesmo tempo que ocorrem aproximações com as concepções por eles difundidas.
Palavras-chave: Plano Nacional de Educação. Direito à educação. Cidadania global.
The right to education and global citizenship: agreements and disagreements with the principles of the new National Education Plan
Abstract
This text is the result of the reflections resulting from the Global Action Week for Education’s program hosted in Brazil in 2024, coordinated by the National Campaign for the Right to Education, entitled "ENP in People’s Mouths: for the right to an education with justice and socioenvironmental transformation”. The aim is to look for signs of direct or indirect links between the right to education and the concept of global citizenship in the four documents that make up the corpus of analysis. The theoretical-methodological conception is based on document analysis and bibliographic review. It was found that the concern with the exercise of citizenship is linked to issues of social and socio-environmental justice. There is also criticism of the proposals of multilateral organizations, while at the same time there are approximations with the concepts they disseminate.
Keywords: National Educational Plan. Right to Education. Global Citizenship.
Introdução
As reflexões contidas neste artigo decorrem da realização da nona edição da Semana de Ação Mundial (SAM) – coordenada pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação e realizada entre os dias 11 e 18 de agosto de 2024 –, a qual reforça as mobilizações em defesa do novo Plano Nacional de Educação (PNE) de 2024 a 2034 com a chamada: “PNE na boca do povo: pelo direito a uma educação com justiça e transformação socioambientais!”.
A SAM, considerada a maior atividade de mobilização pela educação no mundo, promove amplas discussões sobre o direito à educação em centenas de atividades realizadas em todas as regiões do Brasil e em mais de 100 países.
Na Universidade de Caxias do Sul[3], o evento foi realizado entre os dias 15 e 17 de agosto de 2024, de forma simultânea e síncrona no Campus Sede e no Campus Universitário da Região dos Vinhedos (CARVI) da Região da Serra Gaúcha, localizados, respectivamente, nas cidades de Caxias do Sul e Bento Gonçalves; e no Campus Universitário de Vacaria da Região dos Campos de Cima da Serra, no município de Vacaria.
Na ocasião, o evento foi promovido pelo Grupo de Pesquisa Observa e pelo Observatório da Educação, ambos ancorados no Programa de Pós-Graduação da Universidade de Caxias do Sul, contando com uma ampla comissão organizadora composta por estudantes de graduação e de pós-graduação em educação, integrantes da Área do Conhecimento das Humanidades.
A realização do evento na instituição contou com uma programação que incluiu quatro Rodas de Conversa realizadas com professores, estudantes de graduação e de pós-graduação, gestores da educação e membros da comunidade, finalizando com uma Aula Pública, transmitida pelo canal oficial da Universidade no Youtube e disponibilizada para acesso irrestrito. Em todos os momentos do evento, o objetivo foi destacar a importância da reflexão e do debate sobre o Novo PNE 2024-2034, com a pergunta mobilizadora: “O que o Plano Nacional de Educação tem a ver com você?”. Os debates abrangeram problematizações dos aspectos que envolvem a educação como um bem público, incluindo considerações sobre a garantia e o reconhecimento do direito à educação, sobretudo no campo da educação básica, na reflexão sobre a manutenção do caráter público da educação em um contexto de fortes ameaças privatistas.
O conteúdo proposto para as Rodas de Conversa e a Aula Pública tratou de problematizar reflexões que emergem do texto final da Conferência Nacional de Educação – CONAE – (Brasil, 2023) realizada no ano de 2023, o qual propõe a garantia plena do direito à educação a todas as pessoas e rejeita políticas neoliberais de redução do papel do Estado na educação e de abertura para intervenção de grupos privados sem gestão democrática e sem regulação, o que abre brechas para processos de mercantilização, privatização e precarização da educação pública. O compromisso assumido nas abordagens dos mediadores e dos painelistas do evento foi o do comprometimento com a luta pela garantia de uma educação voltada à justiça social, à proteção da biodiversidade e ao desenvolvimento socioambiental sustentável.
Considerando as temáticas apresentadas nos documentos da CONAE 2024 – Política de Estado para a garantia da educação como direito humano, com justiça social e desenvolvimento socioambiental sustentável (Brasil, 2023) –; e da SAM 2024 – Manual da Semana de Ação Mundial 2024 (Campanha Nacional pelo Direito à Educação, 2024b) –, é pertinente analisar o conteúdo desses documentos, a fim de investigar suas concepções e contribuições para a educação em articulação com a chamada da seção temática da revista Horizontes: “Cidadania Global e Justiça Socioambiental na Educação Latino-Americana: encontros e desencontros”. Nosso objetivo parte do interesse em abordar conceitualmente o modo como os documentos refletem a cidadania global, o direito à educação e a educação para a justiça social e socioambiental.
Tratar as questões do PNE (Brasil, 2014) e suas concepções de cidadania, direito, justiça social e socioambiental é pensar sua relação profunda com os desafios do contexto das políticas de Estado construídas historicamente e que se desdobram na atualidade. Parte da ideia de entendermos o papel do PNE em termos de luta pelo reconhecimento (Honneth, 2003) e pela garantia do direito à educação (Brasil, 1988) nos processos socioeducativos para formação humana. Nesse sentido, estimula a refletir o PNE (Brasil, 2014) como uma possibilidade de avaliação e diagnóstico da realidade da educação por intermédio da participação dos educadores e dos educandos, a partir das conferências municipais, estaduais e nacional, as quais produzem, de forma coletiva, um olhar para a educação do Brasil, em geral, a partir da avaliação do plano anterior, lançando então, desafios para o futuro.
O documento final da CONAE (Brasil, 2023) e o balanço avaliativo do cumprimento das metas e estratégias do PNE – realizado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação (2024a) – possibilitam apresentar dados concretos das problemáticas centrais em relação às prioridades que as políticas de educação ainda precisam enfrentar, para explicitar as contradições existentes e as possibilidades reais de superação e garantir a qualidade da educação em seu caráter público, universal e de categoria.
Os desafios que cercam o PNE (Brasil, 2014) necessitam ser apreciados no contexto e nas implicações de sua formulação, portanto, forjados à luz de um determinado território: o latino-americano. Além disso, é preciso criar uma configuração social, econômica e política de um capitalismo periférico e dependente que, em sua concretude, se expressa na intensificação da concentração da riqueza em uma parcela ínfima da sociedade; e na produção e reprodução de profundas desigualdades sociais, frutos da superexploração dos seres humanos e da natureza.
A justiça socioambiental, uma das temáticas abordadas no texto final do PNE (Brasil, 2014), revela a necessidade de pensar a educação aliada à realidade climática. Para além disso, aponta a premissa da construção de um pensamento ecológico, sustentável e socioambiental de enfrentamento das mudanças e crises climáticas.
A concepção teórico-metodológica que sustenta as análises apresentadas neste artigo fundamenta-se na análise documental, referida por Lüdke e André (1986); e na revisão bibliográfica, orientada por Alves (1992), cujo objetivo é evidenciar os conceitos fundamentados presentes nos documentos, em articulação com a produção teórica sobre o direito à educação e à cidadania. Em uma abordagem dialética do objeto de pesquisa com o intuito de apresentar o movimento histórico de suas contradições (Frigotto, 2010), a análise documental constituiu-se na categorização dos conceitos centrais de exploração dos textos, com base nas palavras-chaves: “Direito(s)”, “Direito à Educação”, “Cidadania”, “Cidadão”, “Socioambiental”.
Por essa razão, este texto está estruturado em duas seções, precedidas por esta introdução e sucedidas pelas considerações finais: a primeira trata de abordagens conceituais sobre a cidadania global, o direito à educação e a justiça socioambiental, presentes nos documentos; e a segunda problematiza os encontros e os desencontros desses conceitos com as premissas pautadas nos documentos analisados, à luz dos interlocutores teóricos acessados para o desenvolvimento do argumento anunciado.
O direito à educação, a cidadania global e a educação para a justiça socioambiental
O tema sobre a defesa dos direitos sociais é bastante amplo e pode ser analisado a partir do princípio da justiça social e política, como um processo interno da sociedade, um movimento de resistência e ainda uma conquista para o acesso a direitos elementares de dignidade da vida humana e coletiva; ou, em outra direção, pode ser considerado, puramente, pela ótica da ordem da justiciabilidade. Ao aproximarmos as lentes do movimento histórico da luta pelo reconhecimento do direito à educação no Brasil e pela garantia do acesso para todos, observamos que essa é uma conquista recente que ainda demanda muita luta por seu reconhecimento. Esses movimentos ganharam a devida notoriedade somente na promulgação da Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988), a qual, em seu artigo 205, contempla a educação como “direito de todos e dever do Estado e da família”.
A Constituição de 1988, considerada como um marco histórico de uma sociedade democrática e de direitos, compromete-se, por intermédio do Estado, a promover e incentivar, em colaboração com os diversos setores da sociedade, o desenvolvimento do pleno acesso à educação como uma condição intransponível para o exercício da cidadania.
A partir das formulações de Haddad (2012, p. 217-2018), podemos afirmar que, nos últimos 40 anos, o Brasil deu um salto importante nas políticas sociais de acesso ao direito à educação, pois “ampliou o acesso e as garantias legais e incluiu um enorme contingente de pessoas nas redes de ensino público”. Contudo, o autor aborda o fato de que tais avanços não conseguiram garantir a qualidade e a universalização dessa oferta no ensino público. Ao contrário, o movimento de ampliação de vagas deflagrou uma menor qualidade na rede pública, colaborando para o fortalecimento de setores privados, acentuando ainda mais a relação público-privado na educação.
Em colaboração aos debates de qualidade e acesso à educação, a pesquisadora Algebaile (2009), em sua tese, defende que a história da expansão da escola pública no Brasil representou e ainda representa um projeto de gestão da pobreza, no âmbito do qual o direito à educação escolar e a expansão da esfera escolar resultam em uma espécie de “ampliação para menos”, em um movimento que gera o encurtamento da qualidade da educação.
A precarização do ensino público constitui-se o resultado do desdobramento do caráter dualista da educação, como define Libâneo (2012, p. 13), pois é “caracterizada como uma escola do conhecimento para os ricos e como uma escola de acolhimento social para os pobres”. Essas marcas históricas aprofundaram-se nos últimos anos, ampliando o abismo dos problemas do direito à educação no País.
O documento da CONAE (Brasil, 2023, p. 27) afirma que, apesar dos avanços legais nos últimos anos, o panorama da educação no País “continua apresentando desigualdades e assimetrias no acesso na qualidade e permanência de estudantes, em todos os níveis, etapas e modalidades da educação”. As projeções do plano ancoram-se na necessidade do desenvolvimento de políticas públicas de promoção da igualdade e equidade entre todos os entes federados, e “para isso é preciso que ele seja seguido por um fluxo adequado, que inclua aprendizado e conclusão com qualidade” (Brasil, 2023, p. 28).
O balanço realizado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação (2024a, p. 21) sobre os 10 anos de execução do último PNE apresenta elementos para a avaliação das implicações fundamentais para a concretização do direito à educação:
[...] financiamento adequado e justo da educação pública brasileira, com a implementação do CAQ em sua lógica original de condicionamento de recursos a direitos, e não o contrário; Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SINAEB); e o fortalecimento da gestão democrática.
O documento observa a necessidade de uma efetiva implementação do Custo Aluno-Qualidade (CAQ), para tornar adequado e justo o financiamento educacional; do redirecionamento do SINAEB, para contribuir diretamente para a melhoria das políticas públicas educacionais na ampliação do sentido da avaliação, propondo-se a avaliar a qualidade, a equidade e a eficiência da educação básica no País; e, por último, do fortalecimento da gestão democrática, como princípio de aprimorar a participação tanto dos municípios quanto da comunidade educacional, acadêmica, e da sociedade civil, que não foram considerados nas instâncias principais de governança no texto aprovado na Comissão de Educação do Senado Federal.
O texto do balanço da Campanha Nacional pelo Direito à Educação (2024a, p. 7), de uma forma abrangente, constitui-se um documento de denúncia que revela dados preocupantes, uma vez que, “em dez anos de vigência, apenas quatro das vinte metas foram ao menos parcialmente cumpridas”, anunciando que, no conjunto do PNE 2014-2024, a maioria dos objetivos prescritos em suas metas está longe de ser cumprida, mesmo com atraso, em grande parte devido às políticas de descontinuidades. Como exemplo, as políticas de corte de gastos públicos, como a Emenda Constitucional (EC) 95/2016, representam um dos grandes obstáculos para a universalização do acesso à educação de qualidade no País.
As fragilidades apresentadas em relação ao direito à educação – que inclui acesso, permanência, equidade e qualidade – tornam ainda mais distantes os debates sobre a cidadania como um direito civil, social e político na constituição de uma sociedade democrática e de direitos. As discussões em torno do exercício da cidadania não são novas. Segundo Ribeiro (2012, p. 299-300), elas estão presentes desde os pensadores gregos, na definição daqueles “que participam da política na pólis ateniense, e pressupõe a liberdade de decisão e a igualdade entre os pares”. Dos filósofos gregos aos pensadores dos nossos tempos, o debate em torno da cidadania segue na dimensão da importância da participação dos indivíduos na prática da vida social. Embora possa haver muitas diferenças epistemológicas dessa categoria, de uma forma geral, há um apreço em refletir sobre as formas de organização e participação da vida em sociedade.
Recentemente, o segmento “cidadania global” vem ocupando o cenário de investigação de muitos pesquisadores e encontra-se na pauta de organismos multilaterais, como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), na tentativa de remontar o debate sobre o papel da cidadania, principalmente, a partir da globalização e do neoliberalismo. As discussões partem do princípio de que, na atualidade, há uma relativização das fronteiras territoriais dos Estados-nações, entre o local e o global. A abordagem é a de que o conceito de cidadania precisa ser revisto na sua relação com o Estado territorializado. Torres (2023), um dos autores expoentes do conceito de cidadania global crítica, aborda em sua narrativa a ideia de que que a cidadania global é uma forma de interpretação de um mundo cada vez mais interdependente, diversificado e cosmopolita – e de intervenção nesse mundo.
Torres (2023, p. 40) afirma que se faz necessária a criação de um novo modelo de cidadania, a partir da estruturação de uma sociedade cosmopolita multicultural: “a cidadania global deveria se basear em uma definição de cidadania multicultural democrática global”.
Em colaboração com diversos autores, incluindo Torres, no ano de 2015 no lançamento de um de seus documentos orientadores, a UNESCO (2015) apresentou o texto Educação para a cidadania global preparando alunos para os desafios do século XXI. Nessa ocasião, os debates em torno do tema acompanharam o ideal da construção de um cidadão comum e plural:
Refere-se mais a um sentimento de pertencer a uma comunidade mais ampla e à humanidade comum, bem como de promover um “olhar global”, que vincula o local ao global e o nacional ao internacional. Também é um modo de entender, agir e se relacionar com os outros e com o meio ambiente no espaço e no tempo, com base em valores universais, por meio do respeito à diversidade e ao pluralismo. Nesse contexto, a vida de cada indivíduo tem implicações em decisões cotidianas que conectam o global com o local, e vice-versa (UNESCO, 2015, p. 13).
O mesmo documento, ao tratar sobre os objetivos e as competências da oferta da educação para a cidadania global, considera a educação para a cidadania global como um caminho para empoderar alunos, para que esses se engajem e assumam papéis ativos, tanto local quanto globalmente, “para enfrentar e resolver desafios globais e, por fim, contribuir de forma proativa para um mundo mais justo, pacífico, tolerante, inclusivo, seguro e sustentável” (UNESCO, 2015, p. 14). Em ambas as definições, encontramos a cidadania como uma construção de sentimentos, competências e pertencimento de um sujeito cosmopolita para além das fronteiras territoriais e de nações preestabelecidas. Trata-se de um debate permeado por muitas camadas. Algumas delas serão tratadas na segunda seção deste texto.
Quando investigada a presença do conceito de cidadania no documento final da CONAE (Brasil, 2023), ele se apresenta a partir da necessidade de assegurar o desenvolvimento de políticas públicas para a elevação da qualidade da educação que tenham por finalidade estabelecer o exercício da cidadania. Essas políticas devem ser associadas às ideias democráticas de justiça social, pautas emancipatórias, participação e inclusão na sociedade civil, em uma relação “ancorada no poder de decisão desses grupos sobre as políticas públicas, com efetiva participação e controle social” (Brasil, 2023, p. 125).
Podemos ainda destacar uma passagem do texto que reflete o contexto da formação desigual do território brasileiro, na trajetória do acesso à educação e como um dos impasses do efetivo exercício da cidadania:
A pobreza, o racismo e as várias formas de preconceito e discriminação, que atravessam o Estado brasileiro, inviabilizando a expressão da cidadania para todas as pessoas, repercutem sobremaneira nos processos educacionais, levando a diferentes formas de desigualdade no acesso, permanência e aprendizagem. Isso afeta especialmente estudantes de camadas populares, negros, dos povos originários, dos povos tradicionais, do campo, das águas e das florestas, migrantes, pessoas em situação de rua, comunidade LGBTQIAPN+, mães solo, população em contexto de privação de liberdade e/ ou reeducandos, pessoas com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento (TGD), transtorno do espectro autista (TEA), altas habilidades ou superdotação, pessoas surdas, surdocegas” (Brasil, 2023, p. 117).
Segundo o balanço produzido pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação (2024a), o descumprimento das metas do último PNE revela resultados que evidenciam as desiguais e injustas condições de cidadania encontradas por populações da sociedade brasileira, especialmente nas camadas mais empobrecidas, proeminências que se refletem na realidade escolar.
O documento ainda apresenta a necessidade de refletirmos sobre espaços concretos de participação social – como os grêmios estudantis e aqueles em conjunto com outros espaços de participação e tomada de decisões –, que possam oportunizar o exercício do diálogo com o conjunto de seus atores, na troca mútua, na problematização dos espaços de poder como um pilar fundamental do direito à educação e da cidadania. A pouca adesão a modelos como o da gestão democrática são impeditivos do exercício cidadão por parte da escola, desarticulando uma importante dimensão de “instrumento pedagógico” que pode ser representada pelas experiências que perpassam a auto-organização estudantil a partir dos grêmios (Campanha Nacional pelo Direito à Educação, 2024a).
A CONAE (Brasil, 2023), em sua edição de 2024, teve como tema de mobilização: “Plano Nacional de Educação 2024-2034: Política de Estado para a garantia da educação como direito humano, com justiça social e desenvolvimento socioambiental sustentável”. Esse tema foi fruto de diálogos e pactuação social entre o Ministério da Educação (MEC) e as entidades representadas no Fórum Nacional de Educação (FNE). Essa aproximação entre os órgãos é resultante de uma preocupação em relacionar os compromissos da educação com a justiça social e ambiental, a “proteção da biodiversidade, o desenvolvimento socioambiental sustentável para a garantia da vida com qualidade no planeta e o enfrentamento das desigualdades e da pobreza” (Brasil, 2023, p. 16).
As preocupações em abordar os caminhos da educação para a justiça socioambiental referendam-se na intensificação da crise climática que vem assolando o planeta e comprometendo a proteção à vida em todas as suas esferas. Na consideração do esgotamento que o modo de produção capitalista produziu ao longo de sua existência, “cujo padrão e ritmo acelerado, se não alterados, podem levar ao colapso socioambiental” (Brasil, 2023, p. 194), o documento apresenta a necessária urgência em considerar a crise ambiental como um tema a ser refletido em todas as esferas da sociedade. Incluímos aí a educação, em seu compromisso com a vida em suas diferentes formas, ambientes e territórios,
[...] partindo da premissa que ela se realiza de modo integral, plena e saudável somente em um ambiente natural com a biodiversidade preservada, protegida e por meio de um modelo de desenvolvimento socioambiental sustentável. Tais aspectos são essenciais à promoção e à garantia da justiça social e ambiental plenas, cujo princípio se materializará com a efetiva superação das desigualdades, da fome, da pobreza e das diferentes formas (Brasil, 2023, p. 194).
A educação para a justiça socioambiental, nos documentos da UNESCO sobre os desafios da educação para uma cidadania global, configura-se a partir do ideário de que as mudanças cada vez mais aceleradas necessitam reconhecer a relevância da educação e da aprendizagem para entender e resolver questões globais, como as socioambientais. Segundo a UNESCO (2015, p. 11), o papel da educação – além de desenvolver conhecimentos e habilidades cognitivas para a construção de valores entre os alunos – pode constituir-se um facilitador para a cooperação internacional, visando promover “a transformação social de uma forma inovadora em direção a um mundo mais justo, pacífico, tolerante, inclusivo, seguro e sustentável”.
Ainda, o documento refere que os desafios que cercam nosso tempo histórico necessitam de uma pedagogia que seja transformadora, que capacite os alunos a solucionar desafios persistentes que envolvem toda a humanidade – em seu sentido internacional –, que seja relacionada ao desenvolvimento sustentável e à paz. Segundo o documento, é papel da educação problematizar os conflitos da sociedade referentes às desigualdades sociais como a “pobreza, mudança climática, segurança energética, [...] todas as formas de desigualdade e injustiça que ressaltam a necessidade de cooperação e colaboração entre os países, além de seus limites terrestres, aéreos e aquáticos” (UNESCO, 2015, p. 11).
Contudo, argumentamos que o desejo presente no documento referido não é suficiente, pois refletir sobre a crise climática exige a capacidade de ir além, de compreender as relações intercambiáveis e desiguais da produção do capitalismo em diferentes territórios, inclusive para identificar a produção de sua desigualdade para a promoção de uma cooperação internacional.
Saito (2024, p. 11), destacado filósofo japonês, produziu recentemente uma obra necessária para examinarmos os contornos da atualidade da crise climática, elucidando que os territórios do Sul Global vivenciam a transferência dos danos ambientais para as periferias do capitalismo, haja vista que “nas profundezas da periferia, multiplicam-se as crateras abertas pela extração dos minerais essenciais à Indústria 4.0, predominam os campos pelados e esterilizados pela monocultura”. O autor demonstra que a intensificação da exploração da natureza por meio do agronegócio e a superexploração do trabalho, em muitos casos na sua forma análoga à escravidão, são fatores recorrentes e fundantes do tipo de capitalismo necessário no Sul Global para que os países centrais possam usufruir do discurso da necessidade de produzirmos um capitalismo limpo e sustentável. Para ele, “a periferia precisa vencer a barreira da invisibilidade que lhe é imposta para desnudar a hipocrisia das boas intenções institucionais – governamentais e não governamentais” (p. 10).
Relativamente aos desafios da educação para a justiça socioambiental, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação reuniu-se com a UNESCO na Consulta Regional da América Latina e Caribe, realizada no Chile, no início do mês de setembro de 2024, como parte das ações preparatórias para a Reunião Mundial de Educação 2024 – que aconteceu em novembro do mesmo ano, em Fortaleza, CE –, cuja posição foi justamente a de demonstrar os dados que deflagram os abismos que cercam o efetivo exercício da cidadania e o direito à educação na América Latina.
De acordo com a CEPAL [Comissão Econômica para a América Latina e Caribe], em 2020, enquanto cada criança na América Latina teve acesso a, em média, uma educação de US$ 2.528, nos países da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico], elas tiveram acesso a uma educação de US$ 11.619. Se as médias são preocupantes, a diferença entre os extremos é inaceitável. Enquanto o Paraguai e a Guatemala gastam cerca de US$ 700 por aluno por ano, Luxemburgo aloca cerca de US$ 25.000, ou seja, 35 vezes mais. Essas diferenças levam a sistemas de educação básica muito diferentes e são um dos fatores que mantêm as desigualdades existentes ao longo da vida (Campanha Nacional pelo Direito à Educação, 2024b, p. 8).
Os dados evidenciados pela Campanha convergem com as provocações expostas por Saito (2024) ao manifestar as diferenças reais que são produzidas no interior do capitalismo, mesmo que em sua fase neoliberal e globalizante. Os caminhos das reflexões necessitam observar que, ao tratarmos do capitalismo para além de suas fronteiras de Estado-nação, é requerida a compreensão do tipo de cidadania almejada a partir de uma realidade determinada objetivamente. A Campanha expõe a necessidade de pensarmos de forma urgente o papel da educação na sua responsabilidade em relação à justiça climática, para além de uma disciplina curricular.
É essencial elaborar políticas que evitem que a crise climática se torne mais um fator de violação do direito à educação. Um exemplo disso são as enchentes que forçam o fechamento de escolas. Outro exemplo são atores como o agronegócio e a mineração, que agem para fechar escolas do campo e indígenas. Há casos de escolas que são pulverizadas por aviões do agronegócio ou de rios poluídos perto das comunidades escolares devido à mineração. É urgente uma ação estrutural e intersetorial (Campanha Nacional pelo Direito à Educação, 2024b, p. 10).
Ante os dados evidenciados, o objetivo é rastrear os documentos que compõem o corpus da reflexão – o Manual da Semana de Ação Mundial 2024 (Campanha Nacional pelo Direito à Educação, 2024b); o PNE 2014-2024 (Brasil, 2014); o documento final da CONAE 2024 (Brasil, 2023); e o balanço da Campanha Nacional pelo Direito à Educação (2024a) –, de modo a destacar as definições e as implicações dos conceitos do direito à educação em sua relação com o exercício da cidadania; e de uma educação para a justiça socioambiental, apresentando encontros e desencontros com os fundamentos teóricos e empíricos da educação para a cidadania global.
O Quadro 1, a seguir, mostra a quantidade de ocorrências das palavras-chave em três dos documentos analisados.
Quadro 1 – Ocorrências das palavras-chave
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Palavra-chave |
Documento da CONAE (Brasil, 2023) |
Documentos da Campanha Nacional pelo Direito à Educação (2024a, 2024b) |
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“Direito(s)” |
483 |
218 |
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“Direito à Educação” |
80 |
185 |
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“Cidadania” |
30 |
8 |
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“Cidadão” |
11 |
6 |
|
“Socioambiental” |
12 |
4 |
Fonte: elaborado pelas autoras (2024)
Os resultados da busca – com base nas palavras-chave “direito(s)”, “direito à educação”, “cidadania”, “cidadão”, “socioambiental” – revelam a preocupação de ambos os documentos em referendar uma abordagem que destaca o direito como uma das dimensões fundamentais na constituição da educação brasileira. Os números apresentados no Quadro 1 evidenciam as ocorrências das palavras-chave, relativamente a cada documento – em especial, a palavra-chave “direito” é a mais recorrente. Nessa perspectiva, a segunda seção deste artigo abordará as implicações da relação entre o direito e a cidadania.
Encontros e desencontros entre direito à educação e cidadania global
A análise documental realizada, fonte dos dados e das reflexões apresentadas no decorrer deste artigo, dialoga com a necessidade de observar os caminhos traçados na luta pelo reconhecimento do direito à educação no Brasil. Trata-se do contraponto a uma longa trajetória de negligência e de um projeto sedimentado em desigualdades, como parte integrante de uma totalidade histórica complexa e contraditória, na qual o direito e a cidadania representam um presente incompleto e um horizonte de incertezas.
As reflexões em torno do tema da cidadania e do direito à educação, necessariamente, precisam ser encaradas à luz dos desafios da formação social brasileira na tentativa de elucidar com criticidade e profundidade os movimentos contraditórios que sustentam a realidade concreta em que são produzidas. Para isso, observamos a cidadania ao longo dos textos da CONAE (Brasil, 2023) e da Campanha Nacional pelo Direito à Educação (2024a, 2024b) como uma condição negada à maior parte da população de nosso país. A cidadania não pode ser reconhecida como um direito abstrato ou uma competência a ser adquirida, deve ser vista como uma possibilidade concreta de apropriação de direitos civis, políticos e sociais que viabilizem o acesso à participação nas decisões cruciais da vida social.
Poziomyck e Guilherme (2022) anunciam que há um conjunto de reflexões em torno da educação para a cidadania global, sustentadas em uma visão acrítica e que observam as dinâmicas do desenvolvimento da cidadania a partir de países centrais na produção de capitais, exportando visões eurocêntricas que privilegiam grupos dominantes, em um contexto em que o cosmopolitismo é tratado como mobilidade de capital e competências globais. Mas, também, é possível encontrar abordagem voltada para a conscientização global, a qual “objetiva desenvolver nos estudantes empatia e sensibilidade cultural, provenientes de valores e pressupostos humanistas” (Poziomyck; Guilherme, 2022, p. 3).
No território latino-americano, é fundamental aproximar o conceito de cidadania ao de democracia, nos limites daquilo que conhecemos como a democracia liberal, fundada no ideal do poder que emana do povo. Nos dizeres de Miguel (2022, p. 11), a democracia como ação representativa da sociedade – portanto, restrita – pode ser percebida como “uma arena política na qual a igualdade formal impera, logo as desigualdades que persistem para além dela podem ser desconsideradas”. Ainda, segundo o autor, a democracia na periferia capitalista representa uma forma específica de gestão do Estado, inclusive como mecanismo de mediação dos conflitos. Ele acrescenta que
[...] os cidadãos dotados de direitos políticos não são criaturas incorpóreas e sim pessoas concretas, com sua situação no mundo determinada por fatores como a posição nas relações de produção e o acesso à propriedade, o gênero e a sexualidade, a origem ética e a cor da pele (Miguel, 2022, p. 11).
Os determinantes mencionados impactaram diretamente na capacidade de acesso ao ingresso na esfera da vida pública em todas as suas dimensões. De modo geral, observamos a concepção de democracia vinculada à garantia de seu acesso formal e representativo para o exercício da cidadania – por exemplo, pelas vias eleitorais como um sistema democrático – ao mesmo tempo que nega seu acesso substantivo. Nas palavras de Mészáros (2015), a democracia substantiva corresponde ao efetivo exercício de participação, de forma igualitária, de uma prática amplamente exercida em todas as esferas das tomadas de decisões.
Ao considerarmos a sociedade como um tecido social em constante movimento de transformação – portanto não determinada ou a-histórica –, destacamos sua capacidade de tensionar o exercício da participação social, buscando em alguns casos ultrapassar as barreiras da democracia representativa na direção de uma democracia substantiva. Esses fatores culminam nas tentativas da capacidade de ampliação de seus processos organizativos e de pressões coletivas, como forma “de incidir sobre a correlação de forças” (Miguel, 2022, p. 16) na construção de um projeto de nação inclusivo – embora, em uma sociedade capitalista, os ideais democráticos de igualdade e liberdade constituam-se contraditórios (Fontes, 2012).
Ao analisarmos a amplitude que significam os contornos do capitalismo em sua fase neoliberal e globalizante – e a construção da cidadania nesse contexto –, faz-se necessário entender a especificidade do capitalismo latino-americano, como um território anexo e dependente, de intensificação da superexploração do trabalho e da concentração de riquezas em detrimento dos grandes capitais. Essas marcas históricas da constituição do capitalismo no Brasil encontram-se na base de diferentes esferas da vida social e interferem diretamente no exercício da cidadania.
É possível considerar que nossas fronteiras, em uma era globalizante, encontram-se cada vez mais difusas e porosas, porém esse movimento não assegura que fronteiras sociais, políticas e econômicas caminhem na mesma direção. Há um conjunto de desencontros que produzem no território latino-americano uma grande fragilidade na garantia do exercício da cidadania, e em muitos casos a cidadania é apresentada como um privilégio. A ausência de direitos elementares – como saúde, alimentação, vestuário, moradia, trabalho e educação – ou o pouco acesso a eles, de uma forma mais abrangente, reforça a precariedade da condição de vida na América Latina, reverberando parte do abismo do acesso à cidadania e à democracia substantivas.
O texto da CONAE (Brasil, 2023, p. 139), em muitas de suas passagens, destaca a responsabilidade com a qualidade da educação pública como um dos fatores determinantes para o pleno desenvolvimento do direito à educação, haja vista que “uma prática social, histórica e política tem como objetivo basilar atuar na formação da pessoa para o exercício da cidadania, com responsabilidade sociopolítico-ambiental”. A defesa da qualidade da educação está enlaçada com um projeto de formação emancipatória, na construção de um projeto de sociedade, de Estado, de cidadania e de ser humano.
Por esse motivo, as discussões em torno de uma educação para a cidadania necessitam levar em consideração a qualidade da educação pública para seu pleno direito, envolvendo questões articuladas ao funcionamento dos sistemas e das instituições da educação básica ao Ensino Superior que contemplem
[...] os processos de organização e a gestão do trabalho educativo, bem como o currículo, as formas de ensinar e aprender, as formas de ingresso nas instituições educativas, a formação, os planos de carreira, cargo e remuneração dos profissionais da educação, salários dignos e a valorização dos docentes e as políticas públicas para a diversidade e diferença nas instituições educativas. Além disso, envolve, também, questões macroestruturais, de ordem social, econômica e política, como a superação das desigualdades econômicas, regionais e intrarregionais, entre cidade e campo, entre raças e etnias, bem como as desigualdades educacionais, tecnológicas e de renda per capita. Por fim, deve-se considerar, ainda, as políticas públicas, por meio de seu arcabouço legal e de seus programas, projetos e ações (Brasil, 2023, p. 144).
Sendo assim, assegurar o direito de todos para o exercício da cidadania pressupõe observar a educação como um dos espaços potenciais para sua promoção e acesso, configurando na identificação de espaços educativos como provedores de uma formação de sujeitos críticos, emancipados, fraternos, inclusivos, éticos e políticos. Para além disso, conforme referência feita pela CONAE (Brasil, 2023, p. 144), implica em uma “formação de cidadãos que visa à transformação social, à superação das desigualdades e ao respeito à diversidade, ao meio ambiente, aos direitos humanos e à manutenção da vida e do planeta”.
É notório que, historicamente, a educação ocupa um espaço privilegiado no desenvolvimento societário, como parte integrada da formação de mentalidades e corpos. Não há dúvidas do poder de influência da educação na formação humana. Porém, faz-se necessário afastarmo-nos de possíveis discussões idealistas que atribuem à educação uma perspectiva redentora, com um fim em si mesma, desconsiderando as bases sociais, econômicas, políticas e culturais nas quais ela se encontra submersa. E mais: certamente, essas são algumas das razões pelas quais a educação se converte em um campo de disputas, pois está intimamente imbricada aos meios e aos fins das necessidades da formação – ou, segundo Gramsci (1999), na conformação dos sujeitos às estruturas da forma de ser e de estar no mundo para o estabelecimento fundamental da construção cotidiana da hegemonia.
Poziomyck e Guilherme (2022) convidam a refletir sobre as nuances que cercam a educação para a cidadania global, muitas delas presentes nos documentos dos organismos multilaterais. É preciso observar a importância da presença de uma cidadania percebida como desenvolvimento de competências globais, com a finalidade de apropriação por parte dos estudantes de habilidades para competir em um mercado e em uma economia altamente competitivos e globalizantes. Os autores apresentam que, por vezes, os sujeitos representados partem de um contexto da classe média em ascensão, a qual tem adotado “modelos de educação internacional por razões instrumentais de vantagem e distinção” (Poziomyck; Guilherme, 2022, p. 6).
As discussões seguem a lógica de que os movimentos expostos anteriormente se ancoram na realidade de uma rede escolar privada, mas ocupam um debate de abrangência universal para todo o sistema educativo, incluindo indicativos de possíveis políticas públicas e reformas curriculares para atender à abrangência dessa proposta em seus sistemas educativos, em que “prevalecem perspectivas particulares com pretensões universalizantes” (Pronko, 2024, p. 7).
O documento da UNESCO (2015, p. 12) destaca a necessidade da construção de “habilidades socioemocionais (soft skills) e atitudes entre alunos que possam facilitar a cooperação internacional a promover a transformação social”. Há um conjunto de direcionamentos, principalmente, nos últimos 50 anos, de contrarreformas na educação básica que caminham na direção das necessidades do mercado de trabalho. A justificativa alicerça-se nos esforços mundiais de luta contra a pobreza e pela melhoria da produtividade dos países, principalmente os considerados subdesenvolvidos.
Autores como Freitas (2024) e Vasquinho e Lamosa (2024), a partir de suas pesquisas sobre o redirecionamento da educação na nova fase da ofensiva neoliberal, verificam uma reorientação dos organismos internacionais que passaram a intensificar uma proposta de contrarreforma mundial da educação, tendo por base “políticas de modelagem do comportamento, através da inserção de elementos da economia e da psicologia comportamental” (Vasquinho; Lamosa, 2024, p. 13), a qual exige a formação da massa trabalhadora adaptada ao domínio de habilidades e competências, sobretudo as socioemocionais.
O conjunto de problematizações de autores como Freitas (2024) recai na natureza das abordagens sobre a aquisição de habilidades e competências, presentes em muitos documentos norteadores de políticas educacionais, como é o caso da Base Nacional Comum Curricular – BNCC – (Brasil, 2018) no Brasil, questionando o uso dessas tendências comportamentais como promovedoras de uma conformação do comportamento, principalmente, da classe trabalhadora como estratégia de disciplinamento diante dos processos contemporâneos de intensificação da flexibilização das relações de produção.
Poziomyck e Guilherme (2022, p. 6-7) assinalam a preocupação em compreender a cidadania para além de uma noção de competência, em seu sentido prático, como direito intransponível em sociedades democráticas:
Esta noção de cidadania como competência, ou seja, como uma série de aptidões que se pode ter, tensiona com a noção de cidadania como prática. No contexto da cidadania democrática, o risco dessa abordagem é promover a ideia de que a democracia é um consectário natural da aquisição das competências da Educação para a Cidadania Global e não um projeto de construção coletiva e contínua.
As reflexões apresentadas, e fundamentadas nos autores consultados, possibilitam expor com profundidade o contexto de acesso à cidadania de forma a explicitar suas contradições. Entre seus encontros e desencontros, os quais possuem suas origens em múltiplas dimensões, na relevância da argumentação proposta nesta seção, o exercício da cidadania, principalmente no território latino-americano, constitui-se um privilégio, se o considerarmos como a construção de uma “efetiva socialização da existência, na mais ampla e livre participação das massas em todos os processos decisórios” (Fontes, 2012, p. 196); e a inclusão aos direitos sociais elementares, princípios da justiça socioambiental.
Por fim, os resultados apresentados – ancorados nos documentos analisados e nos autores que sustentaram a ampliação da reflexão – dialogam na perspectiva de que a cidadania se constitui um debate fundamental a ser realizado nos mais distintos setores da sociedade. Urge que nos atentemos à globalização e aos seus processos interligados e de internacionalização cada vez mais difusos, sem desconsiderar os efeitos do neoliberalismo de um “sistema normativo que ampliou sua influência ao mundo inteiro, estendendo a lógica do capital a todas as relações sociais e a todas as esferas da vida” (Dardot; Laval, 2016, p. 8).
Conclusões
Os debates decorrentes da realização da nona edição da SAM na Universidade de Caxias do Sul possibilitaram um olhar aprofundado para o Manual da Semana de Ação Mundial 2024 (Campanha Nacional pelo Direito à Educação, 2024b); o balanço realizado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação (2024a) dos 10 anos do PNE 2014-2024; o próprio PNE 2014-2024 (Brasil, 2014); e o documento final da CONAE (Brasil, 2023), compondo uma avaliação crítica e problematizadora das questões que envolvem o direito à educação no Brasil para os próximos dez anos do PNE.
Os resultados da pesquisa realizada nos documentos evidenciam a articulação entre o direito à educação, à cidadania e à justiça socioambiental, sustentando a argumentação de que, embora o conceito de cidadania não apareça com a adjetivação de “global”, a preocupação com o exercício da ação cidadã perpassa os textos de modo articulado às questões de justiça social e socioambiental e ao direito à educação.
Os textos destacam uma preocupação central com os desafios da educação na América Latina, em um contexto neoliberal de intensificação dos bolsões de pobreza, de flexibilização do trabalho e da perda de direitos sociais. Em contrapartida, o Estado brasileiro demonstra alinhamento com as políticas internacionais de livre mercado, ancoradas em suas reformas econômicas e sociais. Como parte desse contexto, as políticas de contrarreforma da educação culminam em um modelo amplamente difundido para a garantia do sociometabolismo do capital, que, na atualidade, se materializa na disputa dos currículos escolares.
Esses elementos são destacados por Freitas (2024) e Oliveira (2018), pois o currículo está no centro da crise de sentidos que acomete a formação escolar em todos os seus níveis, uma vez que se trata de uma disputa pelo conhecimento e pelos saberes transmitidos ou partilhados nas instituições educativas. Em decorrência disso, é instaurado um conjunto de contrarreformas (Freitas, 2024), as quais “centram-se no desenvolvimento de competências e habilidades requeridas pelos processos de transformação, sobretudo tecnológicos, pelos quais passam a sociedade e, em especial, o trabalho” (Oliveira, 2018, p. 19). As competências e habilidades serão defendidas como a modernização dos currículos, atribuindo maior flexibilidade à formação dos sujeitos para a agenda do século XXI.
Esse foco pode ser decorrência de um “temor pelo conhecimento”, conforme assinala Young (2016), e está associado à naturalização das noções de aprendizagem difundidas nos quatro pilares da educação recomendados pela UNESCO, no seu Relatório Delors (1988): aprender a conhecer; aprender a fazer; aprender a ser; e aprender a conviver.
O medo do conhecimento e das consciências críticas e epistemológicas referenda a avaliação – e dá centralidade a ela – em suas múltiplas formas e modalidades “como único critério de verdade e mecanismo de distribuição de bens sociais” (Oliveira, 2018, p. 20). Seus resultados determinam o destino dos investimentos para a elevação da qualidade da educação ou o aumento do controle daquilo que deve ser ensinado e aprendido nos espaços educativos formais.
Tais escolhas “coisificam” (Stecanela, 2018) a experiência docente, escolar e acadêmica, culminando com a padronização da educação, das escolas e da formação universitária, haja vista o processo de internacionalização das políticas educacionais já mencionadas.
A avalanche de responsabilidades depositadas nas instituições educativas e a intensa pressão do cotidiano, muitas vezes, resultam em um fazer alienado e ingênuo, embaçando as lentes da observação, esvaziando o processo de conscientização e de luta pelo reconhecimento do direito à educação na sua plenitude, justamente pela carência de uma crítica fundamentada. A velocidade com que crescem as exigências dos novos cenários educativos, demandados pela política e pela economia, não promove a reinvenção de uma educação para o século XXI. Ao contrário, as exigências permanecem no âmbito das reformas que mantêm os mesmos alicerces, portanto requentando velhas práticas em novas roupagens.
Como resultado, são elevados os riscos de reproduzir uma escola e uma universidade da integração, adaptadas às necessidades do mercado de trabalho, da economia e da política, carecendo de um projeto de educação voltado para uma formação humana, para a emancipação cidadã e para o bem comum.
O êxito das políticas educacionais internacionalizadas é diretamente proporcional à padronização da educação. Para isso, há a necessidade de uniformizar a organização do trabalho pedagógico, adotando uma lógica empresarial de correspondência entre objetivos e avaliação e entre conteúdo e método. Atenção também é dispensada para os comportamentos, as atitudes e os valores, incorporando as competências socioemocionais ao vocabulário e às práticas educativas. Essa lógica facilita o controle das práticas pedagógicas, por meio de indicadores que uniformizam as relações para comparar até mesmo o que não é passível de comparação, ou seja, a diversidade sociocultural que nos caracteriza como Sul Global.
A pressão exercida externamente às instituições, pelos mecanismos de avaliação e de regulação, inibe seu potencial criativo, silencia a diversidade cultural que as constitui – e que nos constitui –, tolhe a autoria e deslegitima a autonomia.
Por fim, brota o alerta para a vigilância crítica quanto ao lugar do currículo na implementação do novo PNE: como reprodução instrumental para o mundo do trabalho ou como possibilidade de formação humana.
Concluímos que a defesa pelo direito a uma educação de qualidade e ao exercício da cidadania na América Latina passa pela identificação de suas contradições específicas em articulação direta ao redirecionamento do neoliberalismo em uma sociedade globalizante, na qual as políticas de educação acompanham o processo da disputa de seus rumos.
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Submissão: 29.11.2024.
Aprovação: 13.05.2025.
[1] Universidade de Caxias do Sul, Caxias do Sul: awpsilva@ucs.br.
[2] Universidade de Caxias do Sul, Caxias do Sul: nstecanela@ucs.br.
[3] É de longa data que nos envolvemos com as ações da SAM, desenvolvendo atividades reflexivo-críticas sobre os temas definidos em cada edição do evento, em níveis nacional e mundial, agregando também a matriz local dos participantes das discussões.