Educação socioambiental: novas epistemologias na formação latino-americana
Diogenes Galdino Morais Silva[1]
https://orcid.org/ 0000-0002-4646-9053
Resumo
O artigo trata sobre o atraso de uma educação socioambiental no Brasil. Defende que uma educação socioambiental pode ampliar a consciência discente de tal modo que a sustentabilidade e o meio ambiente se tornem chaves para contribuição e reorganização da educação ecológica sem interrupções, que funciona como imperativo ecológico/social/político em movimento contínuo. É plausível que processos educacionais interconectados às epistemologias orientadas pela ética socioambiental contribuam para reverter a atuação predatória do homem contra o planeta. Com metodologia dedutiva/qualitativa, adequada ao debate sobre ecologia e sociedade como elementos complementares, o artigo defende que a contemplação, a beleza e a Cosmovisão podem funcionar como novas epistemologias para educação.
Palavras-chave: Educação socioambiental. Consciência. Epistemologia. Filosofia.
Socio-environmental education: new epistemologies in Latin American education
Abstract
This paper deals with delay of a socio-environmental education in Brazil. It argues that a socio-environmental education can expand student’s awareness in such a way that sustainability and environment become keys to contribution and reorganization of ecological education without interruptions, which works as an ecological/social/political imperative in continuous movement. It is plausible that educational processes interconnected to epistemologies oriented by socio-environmental ethics contribute to reverse the predatory action by man against the planet. With a deductive/qualitative methodology, appropriate to the debate on ecology and society as complementary elements, this paper defende that contemplation, beauty and worldvision can run as new epistemologies for education.
Keywords: Socio-environmental education. Awareness. Epistemology. Philosophy.
Considerações iniciais
Tornou-se comum, nos dias de hoje, perceber duas forças antagônicas. De um lado, os grupos formados por estudiosos e cientistas climáticos que alertam sobre o esgotamento dos recursos naturais e a aproximação do limite que esse esgotamento representa para a continuidade da vida no planeta terra, ou melhor, a possibilidade de tornar irrecuperável a integridade do sistema ecológico planetário que abriga a humanidade e toda biosfera presente. Do outro lado, o avanço tecnocientífico que caminha, a passos largos, para a continuidade dos riscos, diversas vezes comprovados cientificamente, que incidem no esgotamento dos recursos naturais do planeta terra, começando pelo desarranjo da sua simbiose, necessária para manter o equilíbrio das formas de vida.
Esse avanço oferece cada vez mais produtos cibernéticos artificiais sedentos por energia; indústria de plásticos não biodegradáveis; venenos e pesticidas altamente agressivos; indústria pesqueira predatória; criação de animais em terras desmatadas/griladas; proposta de ampliação das usinas nucleares; indústria descontrolada da moda e do vestuário, sem planejamento adequado para o seu descarte. Parece que esse retrato – em série – de modelos e estruturas capitalistas, depende cada vez mais dos recursos (já esgotados) da natureza (e seu equilíbrio), e soma-se a isso a dificuldade de mobilização da população global para pressionar os governos e os oligopólios, de modo que se possa repensar o modelo de produção e consumo.
Há uma necessidade urgente de propor uma dinâmica para as matrizes curriculares, de modo a atender ao apelo socioambiental (hoje) como principal matriz epistêmica para o ocidente. É possível defender que a formação socioambiental contribui para que o conjunto discentes/docentes/comunidade encontre caminhos para que: i) a razão utilizada em prol do progresso não seja predatória ao meio ambiente e aos povos nativos; ii) o lucro não esteja acima da ética e de uma necessária e urgente responsabilidade com o meio ambiente; iii) o sentimento de pertencimento não seja circunscrito à propriedade privada, mas a toda biosfera presente; iv) os afetos sejam vinculados a um projeto inadiável entre ecologia e sociedade; e v) que o processo de (trans)formação da consciência discente possa caminhar do consumismo para o humanismo, e deste para novas formas de estar no mundo a partir de uma (eco)transformação consciente e presente em todos os lugares, principalmente no que toca a contemplação da natureza.
Desse modo, este artigo divide-se em três partes complementares: 1) o debate sobre as ideias que retratam o fim do antropoceno; 2) o debate sobre as possibilidades (des)coloniais para uma epistemologia aproximada à educação socioambiental; e 3) a reforma da educação tendo a beleza e a contemplação como parte integrante de sua base. Para citar um exemplo que serve para unir esses três eixos, podemos propor um campo epistêmico na/para a educação que trabalha o conceito de biosfera como pertencente ao primado curricular (e não um tema ligado à disciplina de Biologia), o que significa que a biosfera faz parte de cuidado e de atenção necessários que se oferecem para a soma do que é próprio e pessoal de cada um, e que deve ser vivenciada desde a Educação Básica. Nesse sentido, a educação não ensina somente a cuidar da natureza, ensina que o ser humano é parte indissociável dela por estar intrinsecamente ligado a ela. Eis a verdadeira mudança do paradigma, que permite uma responsabilidade interiorizada e, portanto, ligada entre o ser e a natureza.
Evidências do esgotamento do antropoceno
Temos que reflorestar o nosso imaginário e, assim, quem sabe, a gente consiga se reaproximar de uma poética de urbanidade que devolva a potência da vida em vez de ficarmos repetindo os gregos e os romanos (Krenak, 2002, p. 14).
A ideia de pensar o conceito de educação socioecológica como contributo para a transição entre as gerações, principalmente no que se refere ao problema do esgotamento dos recursos naturais do planeta terra e a compulsão pelo crescimento econômico como ameaça ao futuro da humanidade (Capra, 1996), permite buscar uma consciência transformada em prol de uma relação direta com o ecossistema, ou seja, uma tomada de consciência pensada junto à proposta prática da dimensão ecológica para a educação.
O apelo de Ailton Krenak traduz um pouco dessa urgência da consciência reflorestada pelo imaginário como potência de vida, ou melhor, em prol de uma necessária poética de urbanidade. Nessa poética, cada nova proposta política, social, econômica ou pedagógica deve estar conectada com a responsabilidade inadiável com o planeta terra. Talvez seja necessário registrar que, depois dos últimos acontecimentos climáticos do ano de 2024, a humanidade se encontra no melhor momento para compreender que não existe acaso na natureza, pois tudo o que acontece na natureza tem concatenação própria, que está ligada ao seu mecanismo natural e que é regido por leis universais (causa – efeito). Eis um exemplo de uma tese estrutural do naturalismo que talvez caiba em sua possibilidade prática/pedagógica.
Compreender, aqui, significa transformar, e transformar não implica tão somente se informar. Torna-se, portanto, inadiável um projeto que traga outro paradigma para a educação, um paradigma de (eco)modificação/(eco)evolução capaz de gerar um novo processo, que possa ligar diferentes necessidades que se posicionam para além das necessidades humanas como fins. Nesse sentido, compreende-se que todas as formas de vida são fundamentais dentro de um processo eco/evolutivo e biodiverso. Por isso, uma ecosociopolítica, assume esse saber ancestral (para o futuro) como condição de possibilidade. Isso implica dar ênfase à ecologia e aos saberes ancestrais como potência(s) de vida, em que os fios condutores ampliam e despertam as consciências e os afetos junto à natureza preservada.
No que tange à questão dos acontecimentos catastróficos, percebe-se uma oportunidade para que os seres humanos compreendam que os momentos de catástrofes/destruições caminham em direção a uma consciência política e ecológica capaz de olhar para o sofrimento/martírio do outro e, além de compadecer/sentir a dor de quem tudo perdeu, poder refletir e aprender que o acontecimento, nesse grande laboratório (que se tornou o próprio planeta), serve de alerta. Também significa refletir quais as consequências do negacionismo climático e porque a relação causa-efeito se mostra em toda sua potência/destruição.
Por outro lado, o fato de (re)pensar os processos de formação e transformação das relações e representações pedagógicas, políticas e econômicas, contribui para uma agenda socioambiental/econômica diferenciada para os futuros governos. Isso não inclui somente educação, mas também a dimensão ética, política, cósmica e tecnocientífica da educação, ou ainda, a que busca a potência de um eco/cosmopolitismo gerador de potência de vida e de natureza pujante. Esse processo eco/cosmopolita implica, ainda, rever os paradigmas atuais da técnica e da tecnologia, uma vez que se pode lembrar que:
a espécie humana se encontra diante da crise do Antropoceno. A Terra e o cosmos foram transformados em um imenso sistema tecnológico – o ápice da ruptura epistemológica e metodológica a que chamamos de modernidade. A perda do cosmos é o fim da metafísica no sentido de que já não somos capazes de aprender o que quer que tenha sido deixado para trás pela perfeição da ciência e da tecnologia ou que esteja além dela” (Hui, 2020, p. 18, grifo nosso).
A partir do conceito de pathos, ou ainda, de algo que acontece[2], é correto afirmar que somente diante da catástrofe se tem a dimensão do que realmente está acontecendo com o clima do planeta. A catástrofe climática carrega os dramas que, no cenário vivo de uma transmissão televisiva ou pela rede web, deixa romper as linhas que separam a fronteira entre sofrimento e impotência, e mostra (sem cortes) o cenário sombrio do que está por vir, ou seja, aquele que revela/afirma que, se não houver uma drástica mudança de comportamento político e econômico, esse cenário tende a se repetir naturalmente, talvez até mais catastrófico.
Por isso, o ano de 2024 torna-se emblemático, não pelo fato de os acontecimentos do clima serem acompanhados em tempo real, mas pelo número de acontecimentos envolvendo uma comprovada mudança climática acelerada, algo que tem assombrado até mesmo quem trabalha com os cálculos relacionados ao clima. Trata-se de uma sequência de eventos, em diferentes lugares do mundo, com uma dimensão destruidora nunca vista antes, ocorridos em razão da intervenção/agressão antrópica aos ambientes naturalmente estruturados/equilibrados do planeta, assim como incontáveis agressões ocasionadas pelas heranças (educação) e interferências (concretizações) humanas. Talvez o efeito pantagruélico do capital (ainda) não permitiu, aos predadores da natureza e aos sedentos pelo poder, a compreensão exata de que, no atual ritmo de destruição, não parece haver espaço e nem tempo para os vencedores. Isso pode ser lembrado pelo conselho de um sábio francês do Século XVII:
Que o homem, voltado para si próprio, considere o que é diante do que existe; que se encare como um ser extraviado nesse canto afastado da natureza, e que, da pequena cela onde se acha preso, isto é, do universo, aprenda a avaliar em seu valor exato a terra, os reinos, as cidades e ele próprio (Pascal, 1988, p. 51).
Aprender a avaliar a terra, os reinos e o ser humano, é a grande tarefa da educação moderna. Porém, aprender com a catástrofe permite, ao educando, um posicionamento crítico que rompe qualquer possibilidade de avançar o capital sem pensar a responsabilidade. Nesses eventos catastróficos, em que o clima parece ser o grande vilão/problema[3], a intensa mobilização das forças humanitárias para ajudar a quem tudo perdeu em meio ao inevitável (uma cidade varrida por um furacão ou desmanchada por uma enchente, só para citar os exemplos mais recentes), tem se tornado uma constante a cada ano. Todavia, os verdadeiros problemas que remetem à raiz (a causa) dos eventos catastróficos parecem complexos demais para serem resolvidos, uma vez que as velhas formas que estruturam os modos de vida, modernizados em razão do consumo, insistem em afirmar que existe um jeito de estar aqui na terra (Krenak, 2019), a saber, perpetuando a exploração e a dominação da natureza (incluindo os excluídos/marginalizados).
A ideia de que os brancos europeus podiam sair colonizando o resto do mundo estava sustentada na premissa de que havia uma humanidade esclarecida que precisava ir ao encontro da humanidade obscurecida, trazendo-a para essa luz incrível. Esse chamado para o seio da civilização sempre foi justificado pela noção de que existe um jeito de estar aqui na Terra, uma certa verdade, ou uma concepção de verdade, que guiou muitas das escolhas feitas em diferentes períodos da história (Krenak, 2019, p.8, grifo nosso).
Pensar que uma educação que permite abrir portas para o diálogo e para o entendimento sobre consumo sustentável é uma das vias que pode refazer as estruturas do capital, mas não é suficiente, se não houver modificação radical das escolhas que algumas empresas e governos continuam a propor. Há propostas que não contribuem para o meio ambiente, pois caminham na direção do esgotamento dos recursos naturais e colocam em risco de extinção de muitas espécies, inclusive a espécie humana.
Por essa razão, o meio ambiente não pode se tornar uma moeda de troca, e o ecossistema, como instância capaz de produzir o equilíbrio natural (e legítimo) para todas as espécies, não pode ser negociado para o progresso humano, pois “embora se tenha tornado senhor da natureza, [o homem] converteu-se em escravo da máquina construída por suas próprias mãos” (From, 1983, p. 14). Logo, resta a tentativa de compreender em que medida o sistema educacional, que é uma das possibilidades de resolução dos problemas ambientais, com seus modelos e processos pedagógicos, pode contribuir para virar o jogo e trazer o cuidado e a responsabilidade com o planeta como pauta principal para todas as disciplinas e conteúdos, ou seja, como imperativos para um novo tempo, de ética e consciência socioambiental.
É amplamente discutido o fato de que, quem paga por essa injustiça (que extingue as condições de vida planetária), são aqueles que menos contribuem para destruir, poluir ou esgotar os recursos desse mesmo planeta (que é a tese central do racismo climático). Em outras palavras, são as populações de países pobres do sul do mundo que mais sofrem com essa destruição. Por essa razão, enquanto governos reúnem forças para achar soluções de longo prazo, a briga por mais capital/produtividade permanece como se nada estivesse acontecendo, pois muitos países que tentam encontrar uma solução são influenciados/pressionados pelas empresas que representam uma parte do problema. É muito provável que isso aconteça pelo fato de que as reivindicações de alguns pensadores pós-renascentistas ainda exerçam grande influência e continuem intocáveis, como heranças não extraídas das mentes e dos corações ocidentais. “Que o gênero humano recupere os seus diretos sobre a natureza, direitos que se competem por dotação divina. Restitua-se ao homem esse poder e seja o seu exercício guiado por uma razão reta e pela verdadeira religião” (Bacon, 1979, p. 89). São ideias que em nada contribuem para o atual cenário climático mundial, em um mundo já superado em seu excesso de superstição, mas totalmente atrelado às origens do poder, transferido da monarquia para as elites, e que manteve o saber vinculado às pautas mais conservadoras, sob forte enraizamento político e educacional. Logo,
O casamento feliz entre o entendimento humano e a natureza das coisas, que ele tem em vista, é patriarcal: o entendimento, que venceu a superstição, deve ter voz de comando sobre a natureza desenfeitiçada. Na escravização da criatura ou na capacidade de oposição voluntária aos senhores do mundo, o saber que é poder não conhece limites (Horkheimer; Adorno; 1989, p. 3-4, grifo nosso).
Talvez por isso a impotência humana em meio à catástrofe seja o que mais causa sofrimento, diante a) das mudanças climáticas aceleradas; b) do derretimento de geleiras e elevação dos oceanos; c) da poluição dos rios e destruição das nascentes; d) do aumento do número de furacões e tufões; e) dos recordes anuais de aquecimento do clima (e dos oceanos), danificando tanto a vida terrestre como a vida marinha; f) das queimadas criminosas e desmatamentos de áreas protegidas; g) da pesca predatória legitimada pelo lucro; h) da ampliação do estado de guerra em diferentes regiões e o colapso das propostas da ONU; i) da xenofobia e dos discursos de ódio alastrando-se em diferentes países. Por assim dizer, essa impotência humana é resultante dessas calamidades. Apesar de ter despertado a atenção de boa parte da comunidade planetária no sentido de unir forças para lutar pelo fim do antropoceno predatório e tentar finalizar, ou ao menos arrefecer a ganância dos que destroem a natureza e ganham muito dinheiro com guerras e práticas predatórias, a ideia de que o progresso não pode parar impede e/ou dificulta uma mudança radical.
Se o progresso não parar, como a educação pode contribuir para criar vínculos duradouros de uma consciência ecológica permanente? Como a educação pode ajudar a encontrar meios de ampliar a vontade humana solidária, rumo às necessárias mudanças em prol das próximas gerações? Pois mesmo o progresso, em sua forma mais necessária, prescinde de responsabilidade humana, que traz as perguntas mais elementares, tais como: que preço esse progresso cobrará do planeta, dos seres humanos e das demais formas de vida? Haverá continuidade da vida? Para quem esse progresso servirá? Ora, somente os humanos, que estão a um passo da autoextinção, podem responder essas questões e reverter as causas dessa ruína a partir de um novo estatuto de (con)vivência em harmonia com o ambiente.
Essa tentativa representa uma mudança estrutural/cultural, e por isso a educação parece ter a representatividade decisiva no processo[4]. Se ainda não é possível frear a ganância humana que destrói para lucrar sem qualquer compromisso com as gerações futuras, são necessárias mais leis, sansões e punições, de modo que o direito à vida seja garantido como superior ao lucro ou ao progresso. Pensar essa estrutura significa defender que, se a atual sociedade, por razões desse progresso desenfreado, tende a se orientar (politicamente/economicamente) pelo poder do agora, e não pela ética e responsabilidade com os outros (seres humanos e biosfera), então é preciso reverter essa dinâmica e, se possível, dinamitar a adaptação dos processos educacionais que levam ao imediato que exige competências. Ora, competências desprovidas de responsabilidade fazem do processo de educação um problema para o planeta. Retraçar o caminho e propor mudanças a favor da vida, e não do domínio humano, contribui para que a política, e os governantes que são formados/educados, cumpram seu dever de responsabilidade, sobretudo aplicando/ampliando as leis ambientais e aumentando punições, de modo que o lucro de quem destrói sirva como resultado direto para a reparação do que foi depredado. Então, refazer o ecossistema (por decisão política) e usar o poder político contra o poder econômico/destruidor em favor da vida e do futuro torna-se um contrapeso.
É o excesso de poder que impõe ao homem esse dever; e precisamente contra esse poder – portanto, contra o próprio homem, é imprescindível sua proteção. E assim ocorre que a técnica, essa fria obra pragmática da astúcia humana introduz o homem num papel que apenas a religião por vezes lhe atribuiu: aquele de um administrador e guardião da criação. Ao ampliar o poder de seus efeitos até o ponto em que este se torna perceptivelmente perigoso para a economia global das coisas, ela estende a responsabilidade do homem ao futuro da vida na terra, vida que doravante está exposta indefesa ao mau uso dessa potência (Giacoia Junior, 1999, p. 413).
Já se sabe da dificuldade de regular essa potência destruidora de vidas e de mundos, pois quando se tenta pensar em novas estruturas sociais e econômicas, em que pese o valor da consciência e do processo de emancipação responsável, é possível encontrar a resistência, às vezes contundente, dos que já se beneficiam do sistema sociopolítico tal como está posto, em diferentes camadas, até mesmo em algumas teorias que legitimam determinados status quo[5]. Assim, debater as questões da ética e da moral com quem pensa em relativizar o pensamento e a ação necessários para a totalidade torna-se a tarefa mais hercúlea entre todos os desafios, pois depende de uma mudança interior.
Assim como a moral burguesa trata de justificar e regular as relações entre os indivíduos numa sociedade baseada na exploração do homem pelo homem, do mesmo modo se lança mão da moral para justificar e regular as relações de opressão e de exploração no âmbito de uma política colonial e neocolonialista. A exploração e a espoliação de povos inteiros por parte de potências coloniais ou imperialistas já apresenta uma longa história. A vontade, porém, de cobrir essa política com um manto moral é relativamente recente (Vázquez, 1992, p. 38).
Por uma epistemologia (de)colonial: interconexões para uma cosmopolítica
A herança de um passado colonial é, em grande medida, um enraizamento difícil de se transformar/mudar, principalmente quando se percebe que os pilares que sustentam as políticas educacionais e seus processos de ensino (para não falar de educação propriamente dita: educere), tendem a dar sustentáculo para as diferentes bases oferecidas/requisitadas pelas luzes do colonizador. Esse enraizamento é uma das amarras epistêmicas que permite que as ideias de outrora, mesmo as mais violentas e equivocadas, persistam, pois nos sombrios porões ou nas prateleiras empoeiradas ainda resistem alguns ensinamentos de uma velha ordem, grafada a partir de uma ideia de progresso oriundo nos séculos passados.
O século das luzes representa, nesse sentido, um momento europeu de grande importância para a filosofia e para a ciência. Todavia, foi um momento em que os intelectuais não deram a devida atenção aos outros saberes ancestrais de lugares nativos que foram forçados a se tornarem colônias, saberes ora ignorados e outrora esquecidos. Essas luzes exerceram grande influência na ciência dos colonizados por imposição, uma vez que “o lema do iluminismo, ‘atreva-se a saber’, querendo dizer ‘confie em seu conhecimento’, tornou-se o incentivo para os empreendimentos e realizações do homem moderno” (From, 1983, p. 15). Exatamente nesse empreendimento da modernidade foi possível perceber a formação das estruturas das escolas de todas as colônias, sobretudo nas colônias forjadas nas Américas, que preparou uma espécie de saudosismo europeu e que se converte, aos poucos, em saudosismo estadunidense.
Por outro lado, cada país tornado colônia tem uma história para contar e outra para (re)contar após a sua verdadeira libertação dialética, uma libertação capaz, à maneira esperançosa de Paulo Freire, de gerar uma nova concepção pedagógica da palavra, ou seja, pela própria palavra antropomórfica, ou um jeito de se alfabetizar em sua palavramundo (Freire, 1987), para dizer por si e para pensar a si mesmo a partir da construção salutar de sua cultura. Para Fiori (2018, p. 25),
alfabetizar-se não é aprender a repetir palavras, mas dizer a sua palavra, criadora de cultura. A cultura letrada conscientiza a cultura: a consciência historiadora automanifesta à consciência sua condição essencial de consciência histórica. Ensinar a ler as palavras ditas e ditadas é uma forma de mistificar as consciências, despersonalizando-as na repetição – é a técnica da propaganda massificadora. Aprender a dizer a sua palavra é toda a pedagogia, e também toda a antropologia.
Pensar essa estrutura pode ser o início da compreensão que retira as velhas amarras massificadoras e orientadoras de progresso. Eis a condição de possibilidade que parte do pressuposto de que a mudança precisa brotar por dentro (educere), pois o que se espera, por conseguinte, de um processo que atravessa o cenário conservador é, pela ideia de um processo de libertação, a busca de uma formação científica e social não forjada, ou melhor, a libertação é ancestral, pois é muito provável que o futuro seja ancestral.
Quijano (2005) ajuda a lançar luz sobre esse processo, pois ao tratar o conceito de raça[6], o autor demonstra a diferença entre o conceito de colonialidade e o conceito de colonialismo. A colonialidade é uma espécie de materialidade forjada, em diferentes estruturas sociais, pelo poder da colônia, mesmo após a sua retirada. Esse poder mostra-se na dependência do pensar e do sentir do ser colonizado, ou melhor, o poder silencioso que permaneceu como um resquício para ser ensinado no porvir. Logo, o empoderamento do neocolonialismo como resquício do colonialismo de outrora se faz na permanência comportamental dos habitantes da velha colônia, sobretudo ao prestar as velhas reverências ao colonizador (e as insensatas novas continências à bandeira do neocolonizador) e ser aplaudido por essa docilidade.
Não é por menos que a educação, nesses contextos, se torna refém do pensamento de outrem, em uma espécie de colonialismo invisível, tal como afirma Galeano (2002, p. 82): “o colonialismo visível te mutila sem disfarce: te proíbe de dizer, te proíbe de fazer, te proíbe de ser. O colonialismo invisível, por sua vez, te convence de que a servidão é um destino e a impotência, a tua natureza: te convence de que não se pode dizer, não se pode fazer, não se pode ser”. Por isso, resta saber se a educação vai despertar as consciências adormecidas que aplaudem as saudações para as bandeiras de outras nações, enquanto assiste sucumbir/marginalizar a maioria de seu povo. Falta bom senso e um pouco de autocrítica onde sobram os bajuladores servis aos imperialistas de plantão.
Esse pensamento, fruto do exercício de um poder silencioso, está ancorado nas relações intersubjetivas que desempenham uma função dinamizadora de sentimentos pós-coloniais. Por essa razão, pode-se imaginar que um grito que tenta ecoar a sua independência, sem verdadeiramente se libertar, só permite um eco simbólico, incapaz de permanecer por muito tempo na mente e no desejo de um povo, principalmente se esse povo se odeia ou se ele vive falando mal de si mesmo. Todo povo que insiste em menosprezar a figura de seu próprio povo, rebaixa, por conseguinte, a si mesmo e toda sua ancestralidade, sem deixar de pertencer a ela. Ainda que um sujeito embarque em outra aventura e atravesse alguma fronteira em busca de outro meio de vida, é de se esperar (ao menos) que ele saiba contar bem a história sofrida da maioria esmagadora de seu povo, antes de falar mal deles e de si mesmo. As razões que precedem uma (possível) conclusão sobre seu próprio povo costumam ser mais completas e, por outro lado, deixar a bajulação servil ao primeiro mundo é se saber enquanto pertencente a outras histórias. Exatamente por isso que a independência começa na força e na capacidade de modificar os pilares que sustentam o poder pós-colonial.
A posterior constituição da Europa como nova id-entidade depois da América e a expansão do colonialismo europeu ao resto do mundo conduziram à elaboração da perspectiva eurocêntrica do conhecimento e com ela à elaboração teórica da ideia de raça como naturalização dessas relações coloniais de dominação entre europeus e não-europeus. Historicamente, isso significou uma nova maneira de legitimar as já antigas ideias e práticas de relações de superioridade/inferioridade entre dominantes e dominados (Quijano, 2005, p. 107).
Assim, é possível afirmar que a saída do invasor se torna um mero acontecimento histórico, em que o rompimento dos fios que teceram o enlace forçado termina por ceder novas topografias a outro conjunto de fios invisíveis que atam um novo nó górdio, agora canalizado por alguma engenhoca cinemática capaz de abrigar novas bandeiras, hinos e novos estilos de vida. O superior, nesse caso, não precisa mais provar sua superioridade, pois ela tenderá a ser implantada nos novos comportamentos/agenciamentos e estrangeirismos do povo (neo)colonizado. Em outras palavras, a tendência desse povo será receber as formas de vida prontamente embaladas e conservadas para serem prontamente aceitas pelos seus descendentes no futuro, quando enfim, ver-se-á novas escolas bilíngues se prestarem ao fortalecimento da antiga trama cinemática, algo que o sistema educacional tende a perpetuar sem qualquer desconfiança da sociedade à qual se destina. Ainda, sem o contexto que a perfila, uma vez que “o que o homem pensa de si mesmo, eis o que determina, ou antes indica, a sua sina” (Thoureau, 2018, p. 13).
Portanto, existe uma necessidade de enfrentar o processo de persistência de culturas dominadoras em sua raiz, que só cabe à população afetada pelas invasões (concretas ou silenciosas). É preciso pensar as propostas (de)coloniais e sua base epistemológica para repensar as direções e lutas, de modo a proporcionar as condições de suas contribuições e, sobretudo, os modos de pensar e viver no planeta. Muito provavelmente, tanto o excesso de informação quanto as novas tendências tecnológicas/cibernéticas não contribuirão para esse fim, muito pelo contrário, uma vez que a informação não implica crescimento e amadurecimento sociocultural, por outro lado,
A maneira como vemos a tecnologia enquanto força exclusivamente produtiva e mecanismo capitalista voltado ao aumento da mais-valia nos impede de enxergar seu potencial decolonizador e de perceber a necessidade do desenvolvimento e da manutenção da tecnodiversidade (Hui, 2020, p. 13).
Trata-se de uma luta pela mudança do reducionismo engendrado pelo olhar de fora, a partir da atenção às consciências de quem sempre esteve do lado de dentro, ou seja, aquele que carrega o saber ancestral, exatamente por se manter em seu território. Saber ouvir (verdadeiramente) o povo nativo significa também escutar a voz de quem não teve chance de falar, bem como não teve interesse em cercar um terreno para afirmar: isso é meu. Essa é, para Rousseau, a frase que marca o fundador da sociedade tal como a conhecemos hoje. O filósofo de Genebra inicia a Segunda Parte do Segundo Discurso com a defesa de que “o verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo” (Rousseau, 1974, p. 265). Logo, o pronome possessivo marca as sementes do individualismo humano (meu) que floresce na sociedade, junto ao desejo que se agrega a uma linguagem determinante (ou que tenta marcar/demarcar/determinar) o que é de um e que (não) é de outro. Então,
Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não pouparia o gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: ‘defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém!’ Grande é a possibilidade, porém, de que as coisas já então tivessem chegado ao ponto de não poder mais permanecer como eram […] (Rousseau, 1974, p. 265).
Talvez ainda falte aos docentes, tanto os que formam novos docentes quanto aos que já se tornaram como tal, a percepção de que boa parte das escolas Latino-americanas dificilmente tecem relações epistêmicas com os saberes produzidos a partir do sul do mundo, e uma razão provável talvez seja o fato de não terem recebido uma educação que reconhece o valor de seu território, ou melhor, o valor dos diálogos com as ancestralidades presentes, eles mesmos, na direção de uma retórica do ouvir (Plutarco, 2003). É preciso resgatar a curiosidade, nem que seja naquelas sementes de curiosidades que moviam os pré-socráticos e encorajavam-lhes a olhar para a natureza e questionarem-se pelo ainda não evidenciado, mesmo que, para isso, tenhamos que encarar o encantamento de frente e, ao mesmo tempo, fugir dos preconceitos. É preciso mais do que formação, é necessário e urgente aprender a ouvir aqueles que conseguem dialogar com a natureza e toda sua ancestralidade. Os povos nativos podem ensinar o que o ocidente ainda não conseguiu ouvir, diante da soberba do homem civilizado.
Por uma nova razão de ser: estruturas de uma educação completa
Tratar dessas questões nas escolas tornou-se algo complexo. Por um lado, é possível perceber o desinteresse de boa parte da população para debater questões ambientais; por outro lado, as estruturas fatiadas em múltiplas disciplinas escolares, sem possibilidade de interconexão, dificultam o diálogo intercultural e metodológico de temas que precisam ser discutidos a partir de um novo patamar epistêmico. Uma disciplina de antropologia poderia contribuir para que a educação ampliasse o diálogo com epistemologias (de)coloniais, pois ajudaria a compreender qual modelo de ensino-aprendizagem a modernidade alcançou, e o que esperar dos resultados dessa escolha. Talvez assim, aprendendo mais sobre os povos ancestrais e a sabedoria dos nativos, o discente alcance um novo patamar consciencial entre a teoria e a prática.
O que caracteriza a mentalidade primitiva não é a sua lógica, mas seu sentimento geral da vida. O homem primitivo não observa a natureza com os olhos de um naturalista que deseja classificar as coisas para satisfazer uma curiosidade intelectual, nem se aproxima dela com interesses meramente pragmáticos ou técnicos. Não é para ele nem um mero objeto de conhecimento nem o campo das suas necessidades práticas imediatas. Estamos acostumados a dividir nossa vida em duas esferas: da atividade prática e da teórica. Nesta divisão, somos propensos a esquecer de que existe um estrato inferior debaixo de ambas. O homem primitivo não é vítima deste tipo de esquecimento; seus pensamentos e sentimentos estão ainda encerrados nesse estrato original inferior. Sua visão da natureza não é meramente teórica nem meramente prática; é simpática (Cassirer, 1968, p. 72-3, grifos nossos).
Ora, sabe-se que a construção de boa parte dos parâmetros que circulam no interior de uma sociedade neocapitalista parte de um posicionamento privado, em que teoria e prática se alimentam desse posicionamento. Em outras palavras, quanto melhor forem as regras que garantam a continuidade das heranças e benesses que favorecem as famílias, as corporações e os oligopólios fechados, tanto melhor. Quem assume o governo de um Estado tende a fomentar sua própria estrutura de educação e impor sua agenda, estando ela vinculada às velhas amarras coloniais (e à manutenção das heranças familiares) ou, ao contrário, busca ampliar novas experiências e vivências pedagógicas em prol da quebra dos paradigmas coloniais. Contudo, as corporações financeiras desejam o jogo como benéfico aos seus lucros, e por isso torna-se comum o enfraquecimento da luta por um novo patamar consciencial da educação para um novo projeto de governo e de nação.
Nessa esteira, os professores que atuam para ampliar a consciência crítica dos discentes são vistos como manipuladores ou fomentadores de ideologias. No entanto, será que a ideologia é uma ferramenta da classe desfavorecida/oprimida ou da classe detentora dos meios de produção e de comunicação? Contra a ideia de emancipação e alfabetização dos atrasados, vale tudo, até mesmo uma sucessão de golpes, alguns conchavos políticos ou a financeirização da educação e dos veículos midiáticos. Vale, também, para convencer o povo (colonizado) da ideia de que conservar se torna um benefício para a própria liberdade.
Não se faz mudança sem luta, e não se luta sem a força interior, ou seja, a luta, nesse caso específico, não significa o uso da violência, mas a busca pelo direito de existir e de consolidar as virtudes que já estavam aqui antes da invasão. Significa, portanto: resistência. Contudo, para encontrar essas virtudes e compreender a transformação dessa resistência e sua experiência ancestral, a educação precisa dar sua contribuição. Pensar um estilo de vida moderno, capaz de acompanhar a necessidade de uma grande mudança interior que, por sua vez, só pode brotar pela mudança de paradigma que compreende que “a Natureza é juiz supremo” (Latour, 2000, p. 162). A natureza é juiz, pois tudo se inicia por ela e tudo termina nela, em um eterno fluxo e refluxo de seu próprio movimento contínuo.
É preciso escolher em que lado a educação vai estar, no lugar da plateia, que assiste o drama de uma tragédia que se mostra em sua potência devastadora, e acredita que é obra de Deus ou do diabo, ou se é do lado de quem ensina, modifica, amplia e participa, a partir de contribuições significativas para o futuro, para que o cenário da tragédia esteja vivo em seus múltiplos dramas e que possa ensinar o que o ser humano fez para se chegar a esse ponto. Além disso, mostra que, se não houver mudanças no estilo de vida humano, a destruição (das florestas, dos biomas, do oceano, das praias, dos rios, das nascentes, das geleiras, dos corais, dos manguezais, das montanhas, do ar puro) será irreversível daqui por diante. Evidenciar a grande mudança também é pensar a postura dos educadores/educadoras que podem ditar/propor as novas frequências epistêmicas que permitirão, em um futuro próximo, o fim da estupidez destruidora de vida e de mundos.
Conclusão – A educação é insuficiente sem a contemplação e a beleza
Porém, agora, a inteira biosfera do planeta, com toda sua pletora de espécies, em sua recém-revelada vulnerabilidade perante os ataques excessivos do homem, exige sua parte de respeito, devido a tudo aquilo que traz em si mesmo o seu fim, isto é, todo vivente. O direito exclusivo do homem à humana consideração e à observância ética foi rompido precisamente com a conquista de um poder quase monopolístico sobre toda outra vida. Com um poder planetário de primeiro nível, não lhe é mais lícito pensar apenas em si mesmo (Giacoia Junior, 1999, p. 412).
Falar sobre a vulnerabilidade do predador é inevitável, diante da busca por uma mudança de paradigma científico. A mudança do clima e a fragilidade desesperada dos que são arrastados pela fúria do tempo/clima não podem escapar da experiência que ensina, bem como do campo da crítica e da luta por outro modo de vida, em que saberes ancestrais demonstram como aprender a viver sem destruir. Essa fúria do clima, que diversas vezes foi anunciada pelos climatólogos como inevitáveis (dado o grau de predação antrópica ao meio ambiente), não pode ser esquecida diante das evidências dos erros e da falta de escrúpulos do capitalismo global, alimentado pelo lucro/progresso a qualquer custo[7], e que não atendeu os chamados da própria ciência ambiental quando era tempo.
Logo, a condição humana tem, diante de si, os saberes dos nativos que sempre entregaram exemplos de um modo de vida sustentável. Tais saberes são oriundos de uma Cosmovisão que abarca um conjunto de conhecimentos ancestrais, de práticas de manejo sustentável e de rituais que contribuem para uma integração (e não somente aproximação) com a Mãe Terra, e que o pensamento vazio (Kopenawa; Albert, 2015) do colonizador não alcançou. Por outro lado, uma integração com a natureza pode brotar pela contemplação da beleza propiciada/oferecida pela natureza viva e conservada, com a qual se permite tecer uma aproximação e uma possibilidade de ler o mundo, ou melhor, a “leitura do mundo” que acontece de modo natural e antecipado à “leitura da palavra” (Freire, 1987, p. 7), pois a beleza, em um mundo (quase) dominado por uma crise humanitária e por um vazio alimentado pela solidão, talvez possa contribuir/despertar.
É preciso pensar nas estruturas arquitetônicas das escolas, em que sobram concretos e faltam jardins, árvores e beleza para contemplar, bem como no excesso de uma estética cibernética de química metálica e dados armazenados. Então, a busca pela sensibilização como fio condutor que a humanidade ainda tem pela frente é um dos desafios que deveriam já estar guiando os próximos projetos (seja de Base Curricular ou de Arquitetura de escolas). Por isso, falar de cosmovisão (Kopenawa; Albert, 2015) e de natureza em uma sociedade atravessada pela ideia de felicidade a partir da posse, da propriedade e do lucro é, para este artigo, um motivo a mais para propor novas epistemologias na educação, sobretudo as que permitem ouvir aqueles que, por sua própria ancestralidade, sabem/ensinam como preservar a natureza.
Adorno (1993) defendia que, pela estética, a educação poderia cumprir um papel transformador, ou melhor, o seu papel revolucionário capaz de ampliar as consciências e despertar a crítica e a autonomia. A relação estética que permanece, tende a construir novas compreensões e, possivelmente, novas formas de vida, mediante a força da contemplação e da sensibilização de quem educa e de quem é educado. Portanto, é preciso compreender que
Não há religião nem ciência acima da Beleza. Eu construiria uma cidade à beira do mar, e numa ilha do porto erigiria uma estátua não à Liberdade, mas à Beleza. Pois foi ao redor da Liberdade que os homens travaram suas batalhas. Por oposição, ante a face da Beleza, todos os homens estendem as mãos uns aos outros como irmãos (Gibran, 1972, p. 02).
O mundo não pode renunciar a sua beleza, e todos os seres se beneficiam e se maravilham com a força completa e serena da natureza. A natureza, em sua face mais transparente, por si só, é uma beleza capaz de guardar sua essência primitiva. O pensamento primitivo distancia-se do pensamento civilizado, muito provavelmente pelo fato de que ambos estão separados por universos epistêmicos diferentes, dado o fato de que foram formados por visões de mundo diferentes. O pensamento primitivo, também chamado injustamente de selvagem, tende a ser classificado como inferior por boa parte das ciências ocidentais, o que inclui, aqui, muitas diretrizes da educação e o modo de ensinar ciência, filosofia, arte e religião na terra colonizada. Por essa razão, o processo colonizador talvez tenha sido tão violento e irracional em seu processo civilizatório, e especificamente hoje, arrasta-se junto às catástrofes, sem pensar em como modificar, de fato, a maneira predatória do homem moderno viver. Em outras palavras, falta imaginação, falta beleza onde sobra poder e ambição. É possível mudar?
Referências
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Submissão: 01.12.2024.
Aprovação: 13.05.2025.
[1] Instituto Federal Baiano, Guanambi: diogenes.silva@ifbaiano.edu.br.
[2] “A história da palavra pathos está obscurecida por uma multiplicidade de conotações. A sua acepção mais geral significa ‘algo que acontece’, quer em referência ao próprio evento (assim Heródoto v, 4; Sófocles, O. T., 732) quer à pessoa afetada (assim Platão, Fédon 96 a: ‘as minhas experiências’), o último tipo de uso consideravelmente alargado em sentidos éticos, como, por exemplo, no ‘sofrimento instrutivo’ dos trágicos (ver Ésquilo, Aga. 177). A especulação filosófica bifurca-se a partir desta altura em dois sentidos diferentes, investigando o pathos tanto como ‘o que acontece aos corpos’ como ‘o que acontece às almas’, o primeiro sob a rubrica geral de qualidades, o segundo sob a de emoções. A ponte é fornecida pelas teorias materialistas da sensação que reduzem o conhecimento sensorial a um pathos dos sentidos que, por sua vez, é capaz de disparar os pathe da alma” (Peters, 1974, p. 183).
[3] Pelo pensamento mágico, há quem defenda ser o fim dos tempos ou castigo de Deus, ou o mais absurdo preconceito: pessoas defendendo que muitos Terreiros de Candomblé explica o motivo de tragédias recentes acontecerem em determinado local. Além disso, há os que negam a ciência/os efeitos do clima para defender o progresso a qualquer custo. Por um lado, há o entendimento religioso delirante; por outro, o capitalismo predador. Eis as razões suficientes para que a educação possa trabalhar o entendimento e ampliar as consciências.
[4] Apesar de saber que “os valores assimilados pelos alunos passam pela TV, música, rádio, moda, publicidade, mais do que pela escola e família. A diminuição do peso relativo da escola na videosfera foi acompanhada por uma dilatação dos espaços de aprendizagem” (Debray, 1994, p. 85-86). Isso mostra a urgente reestruturação dos modelos educativos somada à urgente regulamentação das redes sociais e da internet que, ano após ano, ocupam lugar decisivo enquanto processo pedagógico.
[5] Como está posto em diferentes níveis, pois “nossos sistemas de ideias (teorias, doutrinas, ideologias) estão não apenas sujeitos ao erro, mas também protegem os erros e ilusões neles inscritos. Está na lógica organizadora de qualquer sistema de ideias resistir à informação que não lhe convém ou que não pode assimilar. […] Quanto às doutrinas, que são teorias fechadas sobre elas mesmas e absolutamente convencidas de sua verdade, são invulneráveis a qualquer crítica que denuncie seus erros” (Morin, 2000, p. 22).
[6] Esse conceito consegue moldar o eixo de um colonialismo que tem como característica a relação de um poder mundial eurocentrado, que passa pela dominação colonial antes de desembocar na ciência (eugenia) como prelúdio da tragédia (genocídio): “Por um lado, a codificação das diferenças entre conquistadores e conquistados na ideia de raça, ou seja, uma supostamente distinta estrutura biológica que situava a uns em situação natural de inferioridade em relação a outros. Essa ideia foi assumida pelos conquistadores como o principal elemento constitutivo, fundacional, das relações de dominação que a conquista exigia” (Quijano, 2005, p. 107).
[7] Ver o Capítulo 6 (Mudanças Climáticas) em que (Marques, 2015, p. 277) aborda os relatórios do IPCC e demonstra que no relatório o 2013 revelou (com 95% de certeza) de que: “a atividade humana é a causa dominante do aquecimento observado desde meados do século XX”. A busca do lucro causa diferentes níveis de destruição.